Sobre algumas dificuldades atuais da historiografia

"A ferramenta ou instrumento de trabalho internet acabou se transmutando em um fim em si mesmo com caráter neotecnicista."

Dois fenômenos tem chamado a atenção recentemente. O primeiro, refere-se ao uso indiscriminado da internet expressando-se pela quantidade de “lives". O segundo, consiste na “patrulha político-ideológica da chamada “linguagem inclusiva”.

Estes fenômenos assinalados colocam a historiografia diante de novos desafios. A historiografia se vê diante da tarefa de ter que lidar com a escrita da Historia tendo a informática, a internet e as mídias sociais como ferramentas. Se por um lado isso representa grandes avanços, por outro lado cria novas dificuldades teóricas e metodológicas.

Pode ser observado mais recentemente, nas circunstâncias impostas pela pandemia da Covid 19 (Sars-cov-2), o surgimento de uma verdadeira avalanche de “lives" nas rede sociais, com muitos conteúdos que apesar de bem intencionados, se repetiam ad infinitum e que de modo geral eram destinados para seus pares, nem sempre chegando àqueles que precisam conhecer a realidade de forma menos ingênua. Uma das dificuldades impostas ao historiador que for trabalhar com esses materiais é a de realizar a distinção entre reflexão e mera “lacração”1.

O historiador tem que trabalhar com a heterogeneidade das fontes mas precisa desenvolver critérios de confiabilidade para não aceitar tudo o que surge como sendo relevante.

A título de exemplo da dificuldade atual para se acompanhar a escrita da História, podem ser incluídas algumas dessas “lives" que expressaram uma espécie de momento da “primeira temporada da quarentena". Observou-se que após essa “primeira temporada” (quase impossivel de acompanhar a todas devido ao grande número e simultaneidade), as “lives" tenderam a diminuir chegando a quase desaparecer. Mas no auge das incidências quando as mídias sociais eram abertas havia oferta de “lives" para todo os gostos: de educação, psicanalise, psicologia, auto-ajuda, empreendedorismo, de “coachs", etc.

Parecia ser mais um modismo que havia encontrado um canal para o exercício tanto da “lacração intelectual" quanto do oportunismo.

Essas inferências não significam que não tenham existido “lives" relevantes. É importante salientar que o volume e a simultaneidade dificultavam o acompanhamento, registro e análise das “lives” como “documentos”.

A ferramenta ou instrumento de trabalho internet acabou se transmutando em um fim em si mesmo com caráter neotecnicista.

O universo acadêmico nessas circunstâncias apontadas parece que não conseguiu escapar dessas armadilhas. Não se deve jogar todas as “lives" na vala comum, mas sim usar critérios teóricos e metodológicos para distinguir os conteúdos relevantes de meros “ruídos” acadêmicos e de outras áreas, que encontraram uma oportunidade de exercício do narcisismo e de vaidades contidas, que a pandemia acabou liberando para todos.

Algo semelhante parece ocorrer com a chamada “linguagem inclusiva" que as “patrulhas político-ideológicas” tentam colocar em prática por meio da introdução de novos significados para palavras comuns do cotidiano.

O significado dessas palavras reinventadas para expressar inclusão soa como artificial e coloca novos desafios que a historiografia terá de enfrentar. Alguns exemplos desse modismo e dessas palavras esdrúxulas podem ser encontradas até mesmo no ambiente acadêmico que por princípio deveria lidar com o conhecimento e com a linguagem científica. Essas palavras reinventadas podem ser identificadas em várias mensagens trocadas que aparecem nas mídias sociais. A título de exemplo podem ser citados: “alunes", professorxs", funcionari@s, elu/delu, etc.

Por que esse fenômeno está ocorrendo até nos meios supostamente mais intelectualizados? Por que a questão de gênero tem que estar presente na expressão escrita? Qual o significado e a importância disso? São questões que precisam ser debatidas e compreendidas.

Embora esse tipo de modismo possa ser caracterizado como bizarro talvez seja importante se atentar para a necessidade de sua análise. Esse tipo de atitude pode levar à criação de “bolhas” que somente alguns iniciados podem acompanhar

Seria esse o melhor caminho para se pensar a inclusão? A inclusão precisa antes de tudo ser psicológica e individual, de pertencimento a um determinado grupo ou gheto? Esta atitude não acabaria reforçando a exclusão, já que aqueles que não se comunicam deste modo são qualificados como preconceituosos? É por esse caminho que se pretende construir a autonomia e a emancipação coletiva dos seres humanos, fazendo o jogo raso das linguagens viciadas das mídias sociais?

O que não é enunciado, mas alimenta continuamente essas atitudes é que na gênese dessas manifestações miméticas está o capitalismo. As novas tecnologias, que não são neutras, estão deixando evidente que podem moldar os comportamentos e atingir pessoas em todos os meios, inclusive o acadêmico. Pessoas que se colocam como progressitas e conscientes e que correm o risco permanente de serem manipuladas diariamente pelas mídias sociais que são regidas pelo lucro2.

Para finalizar, seria importante salientar que os fundamentos sobre os quais a História tem se baseado na construção dos conhecimentos históricos estão sendo bombardeados de tal forma e tão rapidamente que a historiografia pode encontrar dificuldades de compreender e acompanhar. Este é um novo desafio que tem que ser enfrentado com Teoria e Método, ciente de que a informática não se constitui nem sequer em uma técnica especifica de investigacao. Ela é apenas um instrumento que visa facilitar o trabalho do historiador, principalmente no que se refere à comunicação e “navegação" de forma rápida. Também é importante reconhecer sua contribuição no armazenamento e recuperação das informações e conhecimentos.

Mas se em algum momento a historiografia precisar se utilizar dessas fontes, representadas por esses fenômenos mencionados , como materiais de pesquisa terá de ser aplicada muito fortemente a Crítica das Fontes ou análise documental que se encontra no campo da investigação científica.

A internet constitui em um grande avanço tecnológico para a pesquisa, mas é somente isso. Esse deve ser o seu lugar.

 

1 LACRAÇÃO - “Lacrar" é um verbo transitivo direto que se aplica a fechar com lacre, selar . Já “lacraçāo" é um termo nascido em ambientes LGBTQIA+ e, era originalmente, sinônimo de arrasar. Mais tarde foi apropriado pelas redes sociais e passou a ser usada como forma de critica irônica por quem promove um discurso que não pode ser refutado. In.: Dicio, Dicionário de Português. Porto: 7Graus, 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/lacrar/ Acessado em: 05/10/2020
2 Como sugestão, “O dilema das redes” – disponivel atualmente no catálogo da Netflix constitui-se em um excelente título sobre essas reflexões.