A derrota do Bolsonaro nas urnas não significa o sepultamento do golpismo e do fascismo

O término da ditadura civil-militar em 1985 não resultou no fim da hegemonia burguesa ou na punição dos responsáveis pelos crimes de perseguição, de tortura ou, até mesmo, do assassinato a opositores, sob custódia do Estado. Ao contrário de países latino-americanos, como Argentina, Uruguai e Chile, que puniram oficiais das Forças Armadas, torturadores e até presidentes, o Brasil trilhou o caminho da conciliação pelo alto, o que deixou feridas abertas em nossa história. A título de exemplo, nas escolas militares ainda é possível encontramos presente o discurso da autoproclamada “revolução de 1964”.

A chamada “Nova República” (1985-2016) representou um pacto instável e temporário entre classes e frações de classes. Na ocasião, sem projeto nacional que significasse minimamente a soberania nacional e a solução dos problemas populares, a burguesia brasileira se contentou em manter-se submissa aos interesses do capitalismo internacional.

Enquanto que o crescimento econômico, promovido nos governos do Partidos dos Trabalhadores, manteve as esperanças de avanços sociais, não havia, no horizonte, uma expectativa de golpe. Entretanto, o aprofundamento da crise capitalista e as contradições oriundas de uma sociedade profundamente dividida demonstram os limites da política de conciliação de classes.

Sob esta perspectiva, a chamada “Nova República” teve seu fim melancólico com o golpe jurídico, midiático e parlamentar contra Dilma Rousseff, em meio ao avanço das pautas moralistas, conservadoras e de destruição dos direitos sociais. Por conseguinte, a vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, foi o ápice da reorganização das forças burguesas alinhadas com os interesses imperialistas, corroborada na forma das ações de um político que se apresentava como sendo um combatente da corrupção e com forte apelo popular.

Em seus quatro anos de Governo, Bolsonaro promoveu ataques sistemáticos e orquestrados contra a classe trabalhadora, às universidades públicas, aos direitos das mulheres, aos direitos da população negra, de indígenas e de LGBTQIA+, além do discurso armamentista, com reprodução de ideias identificadas com o fascismo.

Assim, o avanço das reformas neoliberais acelerou a miséria e a vulnerabilidade de milhões de trabalhadores. Em um país em que o agronegócio lucra milhões, a fila do osso com pessoas mendigando comida e as quase 700 mil mortes por covid expressam, em seu caráter mais autêntico, a barbárie do capitalismo monopolista e financeiro.

Nesse contexto, o “mercado” não se mostrou “nervoso” diante da miséria de milhões de trabalhadores com fome ou sem teto. Sua “mão invisível” transformou-se em um dogma defendido pelos sacerdotes do capital, presentes nas redações da imprensa burguesa e em plataformas digitais. Desse modo, ainda que os grandes conglomerados da mídia brasileira tenham criticado a falta de postura e o despreparo do então presidente na gestão da grave crise sanitária, os mesmos veículos não questionaram a condução da política econômica por Paulo Guedes e foram cumplicies do golpe contra Dilma Rousseff em 2016.

Não é hora de ilusões. A posição crítica diante dos arroubos autoritários do então presidente não condiz com o caráter da burguesia. Nas palavras de Mascaro, não passa de fingimento, na medida em que não se importam com a miséria de milhões, quando está em jogo a manutenção da ordem do capital.

Não compreender a íntima conexão entre fascismo e capitalismo é desconhecer a plena possibilidade de sua recorrência. E, de fato, após Auschwitz, um mundo de outros horrores, não necessariamente comparáveis nem similares, mas mesmo assim horrores, é reiterado. Em favor da exploração capitalista e de suas classes, grupos e estamentos dominantes, o reacionarismo é o seu padrão sempre possível e reclamado (MASCARO, 2022, p. 7).

De fato, a tragédia materializada sobre o povo Yanomami é mais um dos horrores praticados em nome do lucro. Como afirma Mascaro (2022), não se trata de comparar com outras tragédias de maior ou menor proporção, pois, ainda assim, representam a morte de seres humanos sacrificados em nome do “deus” santificado pela imprensa burguesa: o capital.

Se o morticínio em escala industrial é decorrência direta de uma política de extermínio do governo Bolsonaro, sua gênese remonta ao passado colonial, que deixou marcas em nossa formação social, e que podemos presenciar em inúmeras manifestações de agentes públicos, tal qual a falta do Governador de Roraima: “Eles [indígenas] têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho[1]”. Se já não bastasse esse desprezo pela vida, também nos deparamos, em Bento Gonçalves (RS), com a existência de trabalho escravo na colheita de uvas.

Uma operação conjunta da Polícia Rodoviária Federal, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal resgatou 206 trabalhadores em condições degradantes. Os trabalhadores foram contratados por uma empresa terceirizada para a colheita de uvas na região de Bento Gonçalves no Rio Grande do Sul.[2]

Os casos apresentados parecem cenas de um passado distante no Brasil colonial, mas trata-se de fatos comprovados de trabalho escravo, com a prisão de trabalhadores, jornadas de trabalho extenuantes, refeições estragadas, torturas e ameaças de morte, como é possível constatar na imprensa. Obviamente, não se tratou de um episódio isolado, mas da recriação (e prolongamento) do trabalho escravo pelo capital, que impôs as reformas trabalhista e previdenciária, com o objetivo de intensificar a exploração da força de trabalho.

Vale lembrar que a existência do trabalho escravo na contemporaneidade possui uma relação umbilical com a omissão do Estado burguês em fiscalizar a fragilidade das leis de proteção ao trabalhador e com a miséria de milhões de homens e mulheres entregues à própria sorte. É necessário, portanto, termos clareza de que a crítica fundamental a esse quadro de pobreza extrema, de exploração e de extermínio envolve a crítica radical ao modo de produção capitalista que forja crises cada vez mais destrutivas e, também, o próprio fascismo, cuja evidência podemos buscar ao longo no Governo Bolsonaro e nas ações fascistas que ocorreram em 08 de janeiro de 2023.

Não há como negar, diante da magnitude dos atos de depredação e de violência daí adjacentes, que as ações foram financiadas por empresários e que a tentativa de golpe contou com segmentos significativos da Polícia Militar do Distrito Federal e das Forças Armadas, que assistiram placidamente os acampamentos golpistas na frente de quartéis de diferentes localidades do Brasil.

Infelizmente, podemos notar que, em um contexto de profunda crise, indivíduos de diferentes camadas da sociedade, incluindo trabalhadores, identificam-se com o ideário fascista, em nome do combate a um mal maior: o comunismo. Assim, na marcha da insensatez, bradam contra a ideia da igualdade social, do respeito ao outro e da liberdade de diferenças. Nesse contexto, o fundamentalismo religioso também contribui para alimentar o ninho da serpente com a negação de outras crenças. Diante disso, o outro passa a ser demonizado em nome do resguardo dos seus dogmas.

As denúncias carregadas de um viés moralista e liberal presente nas coberturas da grande mídia burguesa contribuem para minimizar o perigo do avanço fascista. Assim, as bases de inúmeras analises se fundam na lógica do funcionamento das instituições e na preservação da democracia. No entanto, é importante que se afirme que o fascismo não é um fenômeno exclusivo do contexto italiano e alemão do período entre guerras. Considerando as contradições insolúveis do capitalismo, o fascismo é uma possibilidade real a partir do qual o capital pode se valer em contextos em que se vê ameaçado.

Quanto maior for a ameaça contra a hegemonia burguesa, mais comprometedores serão os freios contra os supostos abusos de poder. Nesse sentido, o chamado “Estado de Direito” se converte no primeiro a destruir a “democracia”: Itália (1922), Portugal (1932), Alemanha (1933), Espanha (1939), Brasil (1964), Chile (1973), Uruguai (1973), Argentina (1976), entre outros cenários e contextos, por exemplo. Ainda que os exemplos citados tenham grandes diferenças entre si, há algo em comum entre todos: o terrorismo de Estado a serviço do capital.

Diante das análises realizadas, entendemos que a tragédia representada pelo bolsonarismo e pelo fascismo nos parece longe de ser resolvida. Um primeiro passo foi dado nas eleições de 2022. No entanto, a derrota do fascismo só será efetivada com a superação do modo de produção capitalista.

Obviamente, as forças comprometidas com o campo popular não podem esperar de braços cruzados a efetivação de uma sociedade emancipada para declaramos o fascismo sepultado. Enquanto não atingimos o objetivo final, é necessário reorganizar os movimentos populares e a classe trabalhadora em todos os espaços possíveis a partir de pautas que possibilitem o avanço e o enfrentamento das forças fascistas.

Referência:

MASCARO, Alysson Leandro. Crítica do fascismo. São Paulo: Boitempo, 2022.

 

[1] https://www.cartacapital.com.br/blogs/zumbido-justica-antirracista/uma-vida-marcada-pela-morte-a-tragedia-anunciada-do-povo-yanomami/

[2] https://www.cartacapital.com.br/justica/operacao-resgata-mais-de-200-trabalhadores-em-condicoes-analogas-a-escravidao-em-vinicolas-gauchas/