Educação e transição para novo governo Lula: é preciso curvar a vara para a esquerda

No que diz respeito à educação como um ato político, assim como na luta política em sentido amplo, não devemos contemporizar, mas curvar a vara à esquerda, uma vez que os defensores do empresariamento da educação, a curvarão para a direita. Não nos cabe assinalar qual o ponto médio correto que a vara deve estar num governo democrático-popular, pois isso irá depender da construção de hegemonia no jogo da luta de classes e frações de classe no interior no novo governo.

 

Perguntas necessárias: qual a educação que corresponde aos interesses dos trabalhadores? Uma educação considerada direito e ministrada em instituições públicas, sendo gratuita, laica e comprometida com uma formação integral? Ou, uma educação caracterizada como serviço, ministrada em parcerias público - privadas e com conteúdo uniformizado nacionalmente?

Eleição com vitória apertada. Todos sabíamos que não seria nada fácil impor uma derrota ao candidato nazi-fascista, pois beneficiou-se pelo uso intensivo da máquina do Estado, das mídias sociais para difundir o ideário autoritário, com o apoio das igrejas conservadoras (católicas, evangélicas e outras), empresários que precisam de um Estado autoritário para garantir sua lucratividade, à custa dos que vivem do trabalho, inclusive das forças que detém o poder de Estado para o uso das armas, que deveriam se limitar a constituírem-se poder de Estado e não aparelho de Governo, qualquer que seja.

Mas independente se foi por pouco ou por muito, a regra do jogo democrático é clara: ganha o candidato que obtiver até mesmo metade mais um voto: Lula obteve 50,9% dos votos válidos, totalizando 60.309.929 votos, contra 58.185.332 de seu oponente, uma diferença de mais de dois milhões de votos (exatamente 2.124.597 votos).

Apesar dos candidatos aceitarem as regras da democracia, os apoiadores do conservadorismo reacionário e autoritário não se dão por vencido, incitados pelo discurso da falta de lisura e confiança no sistema eletrônico de votação, sobre o qual nunca houve nenhuma ocorrência comprovada de fraude na votação; ao contrário a transparência e confiabilidade do sistema tem sido atestada por instituições governamentais e empresas, públicas e privadas, bem como por empresas prestadoras de serviços aos partidos que disputam o pleito e por observadores internacionais.

Entretanto, logo após a divulgação do resultado da eleição presidencial de 2022, grupos de apoio ao candidato derrotado iniciaram a ocupação das rodovias, em novo e característico blackout de empresas de transporte, seguido de ocupação de espaços públicos que, gradativamente, foram se transferindo para a frente ou proximidade de instalações militares do exército, marinha e aeronáutica. A contestação do resultado das urnas se faz acompanhada da reivindicação de intervenção militar - em outras palavras, um golpe de Estado que garanta a continuidade de Jair Messias Bolsonaro à frente do poder executivo. Pauta totalmente descabida para uma geração que viu o país afundado na barbárie de  uma ditadura militar que perdurou por mais de duas décadas, encerrada com nossa palavra-de-ordem: “Ditadura Nunca Mais!”.

Apesar do golpismo reincidente na história política brasileira, que ainda sequer colocou a limpo os acontecidos na ditadura militar (de 1964 a 1985), as instituições democráticas estão aparentemente em funcionamento, com o poder judiciário assumindo a dianteira na garantia dos poderes constitucionai, e os presidentes das duas casas legislativas reconhecendo os resultados do pleito eleitoral, a lisura do processo eleitoral sob o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o funcionamento do Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal de 1988.

Não irei me ater aos detalhes das equipes de  transição que estão sob a coordenação de Geraldo Alckmin, excetuando que a vitória de Lula significou, por um lado, a derrota eleitoral, mas não política e social, de um processo de avanço do conservadorismo reacionário e autoritário, com características nazi-fascitas; e por outro, a vitória de uma ampla frente democrática, abarcando praticamente todos as facetas possíveis do espectro político - da direita, passando pelo centro, à esquerda. Haverá muitos pontos de retomada dos governos Lula anteriores, como as políticas sociais e o combate à miséria e à fome, com a adoção de uma política de conciliação de classes e não de confronto entre classes e frações de classe, ainda que estes tenham ocorrido nos dois mandatos do Presidente Lula e da Presidenta Dilma. Não há como eliminar a luta de classes por decreto ou por decorrência de um plano de governo, pois podem ser minimizadas na esfera governamental, mas está em pleno vigor nas relações econômicas e nas relações sociais.

Com isso a transição de governo, prevista e regulamentada pela Lei 10.609/2002 e o Decreto 7.221/2010, começou após o segundo dia do anúncio do resultado eleitoral, tendo por objetivo ter acesso às informações dos órgãos públicos federais e o início do planejamento de ações de curtíssimo e curto prazo pelo governo eleito. No dia 08 de novembro deste ano de 2022, ocorreu uma reunião com mais de 50 educadores com a equipe de transição, sob a coordenação do ex-ministro da Educação, Fernando Haddad, havendo na reunião hegemonia dos defensores do empresariamento da educação e que, de modo geral, tomam a educação como um serviço que deve ser suprida pela iniciativa privada, graças ao uso de vários mecanismos.

A composição da equipe que se reuniu contempla apenas uma parte das forças da “frente amplíssima”, com os “reformadores empresariais da educação”, como tem conceituado Luis Carlos de Freitas, ocupando 18 dos 46 assentos, a FGV (Fundação Getúlio Vargas) outros 7, algo privilegiadamente desproporcional aos 3 representantes das 107 universidades e institutos federais. É preciso repetir as significativas ausências: como as entidades estudantis - a UNE (União Nacional dos Estudantes) e a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), a ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação), a ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) e movimentos sociais com atuação e contribuições à educação, como os movimentos sem terra e quilombolas, os sindicatos docentes, as entidades científicas e indígenas.

A transição de um governo francamente reacionário, para um governo que se pretende democrático-popular, lamentavelmente está se dando, na educação, até o momento,  dominada pelos adeptos da reforma empresarial da educação. Não podemos esquecer que uma análise básica da educação contemporânea, coloca em relevo que o Brasil sequer conseguiu erradicar o analfabetismo; sequer ocorreu a universalização de acesso à educação e à escola em nenhum de seus níveis; quando a qualidade da educação se mantém sofrível, conforme os indicadores das avaliações feitas apenas em língua portuguesa e matemática. A educação brasileira se mantém excludente, dual, precária e mal conseguindo cumprir seu papel de socialização das novas gerações nos saberes fundamentais na filosofia, nas ciências e nas artes.

Mais grave é que tem sofrido um severo desmonte através de políticas do governo federal, com corte de recursos, retrocessos políticos conservadores e tentativas de implementação de pautas descabidas, como a militarização de escolas, a partidarização (sob a contraditória denominação do projeto: “Escola sem partido”), o retorno de uma perspectiva religiosa fundamentalista, a homeschooling e uma corrupção escancarada, literalmente arrancando recursos até da merenda escolar, num momento de avanço da miséria e da fome.

As eleições presidenciais deste 2022 reacenderam as esperanças por barrarmos o avanço da barbárie, retomando pautas compatíveis com a civilização, com a derrota do golpismo e do crescente autoritarismo, colocando o Brasil no rumo da democracia e da liberdade de organização e de debate.

Como defensor de uma perspectiva superadora do modo capitalista de produzir a vida material, social e espiritual, pautando uma educação que seja a um tempo histórica e crítica, acho que precisamos ter os pés nos chãos, fazendo análise concreta da situação concreta, entendo que ainda precisamos conquistar uma escola pública, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada. Em nosso país, a pauta da burguesia revolucionária e liberal, com suas bandeiras desfraldadas na Revolução Francesa, ainda não foram conquistadas. Estamos longe dessa escola unitária, também da implantação de um sistema nacional de educação, alcançado no século XIX por muitas nações. É por isso que a equipe da educação reunida pelo Haddad não nos representa, pois tem um escopo muito limitado, conforme registram vários textos publicados nestes dias, como

  1. o de Luiz Carlos de Freitas, “Na área de educação, começa mal a transição”, publicado em 09/11/2022 [1]

  2. a “Nota Pública de Professoras/es, Pesquisadoras/es e Ativistas da Educação sobre a composição da Comissão de Transição da Educação”, articulada no dia 10/11/2022, e com 132 subscrições, tornada pública no dia seguinte, neste domingo (13/11) as 07:00 horas, estava com 2383 novas assinaturas postadas.[2]
  3. o artigo “Educação na transição de governo”, de autoria de Marcos Francisco MARTINS, José Gonçalves GONDRA & Luciano Mendes de FARIA FILHO [3]

Iniciei este texto com uma pergunta, seguida de duas outras: qual a educação que corresponde aos interesses dos trabalhadores? Uma educação considerada direito e ministrada em instituições públicas, sendo gratuita, laica e comprometida com uma formação integral? Ou, uma educação caracterizada como serviço, ministrada em parcerias público - privadas e com conteúdos uniformizados nacionalmente e impostos pela submissão da educação a sistemas de avaliação que exigem domínio desses conteúdos?

No meu entendimento não há como fazer, no ponto de partida, as conciliações esperadas pela ampla frente para a eleição de Lula. No que diz respeito à educação como um ato político, assim como na luta política em sentido amplo, não devemos contemporizar, mas curvar a vara à esquerda, uma vez que os defensores do empresariamento da educação, a curvarão para a direita. Não nos cabe assinalar qual o ponto médio correto que a vara deve estar num governo democrático-popular, pois isso irá depender da construção de hegemonia no jogo da luta de classes e frações de classe no interior no novo governo.

Propositadamente me apropriei da “teorias da curvatura da vara”[4], no sentido exposto por Saviani de que é necessário, para uma pedagogia revolucionária “curvar  a vara para o outro lado”, na expectativa de que com essa inflexão a vara atinja o seu ponto correto”, a depender das lutas de classes e dos consensos no equipe governamental.

Para finalizar, novamente recorro a Saviani que, lucidamente, situa que nossa luta pela educação não se dá numa formação social abstrata, mas ocorre no interior de uma sociedade capitalista, que é “dividida em classes com interesses antagônicos” e é exatamente disso que decorre o papel da escola: “será um se… se colocar a favor do desenvolvimento do capital [...] Será outro, se ele se posicionar a favor dos interesses dos trabalhadores, e não há possibilidade de uma terceira posição. A neutralidade é impossível. É isso o que se quer dizer quando se afirma que a educação é um ato político.”

Independente dos resultados a que se chegar na adoção da política educacional pelo MEC, continuaremos assumindo a perspectiva da necessidade de uma educação revolucionária que, para ser possível, exige uma pedagogia igualmente revolucionária.

Isso decorre do entendimento de que não há posição intermediária, ou conciliação possível: “É nesse quadro que a escola e o professor se situam, podendo se posicionar na perspectiva da classe fundamental dominante, considerando as crises como acidentes contornáveis, não afetando a estrutura. Contribuem, assim, para consolidar o status quo, impedindo a transformação estrutural da sociedade; mas podem, inversamente, se posicionar em favor dos interesses da classe fundamental dominada, isto é, dos trabalhadores, promovendo a compreensão objetiva do modo de funcionamento da sociedade, explicitando as contradições da estrutura, contribuindo, dessa forma, para a transformação radical da sociedade." [5]

 

[4] ESCOLA E DEMOCRACIA: PARA ALÉM DA “TEORIA DA CURVATURA DA VARA”, publicado em 1982, https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/9713/7100

[5] Saviani, D. Pedagogia Histórico-Crítica, quadragésimo ano: novas aproximações, Campinas, SP : Autores Associados, 2019, p. 137

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