A injustiça socioeconômica e a intolerância no Brasil

A chamada grande mídia empresarial, em sua pauta semiológica, mostra o Brasil como um país da tolerância e do equilíbrio das relações de classes e étnico-raciais. Ao contrário, o Brasil real e profundo se encontra em uma das maiores desigualdades econômicas e sociais do mundo, fruto da espoliação da elite do capital.

“A História é, ao mesmo tempo, conhecimento do passado

e do presente, do ‘tornado’ e do ‘tornar-se’, distinção em

cada ‘tempo’ histórico, quer seja de ontem ou de hoje, entre

o que dura, é perpetuado, perpetuar-se-á vigorosamente –

e o que não é senão provisório, até mesmo efêmero, o autor

dessas linhas responderia de bom grado que é toda a História

que é preciso mobilizar a inteligência do presente.”

(Fernand Braudel, 2007, p. 236)

           

Fazer uma análise conjuntural foi e é um desafio de construir aquilo que Bachelard (2004) denomina de “conhecimento aproximado”. Nesse caso, pensa-se na estrutura econômica e social do Brasil ossificada ao longo do tempo.

A história republicana brasileira possui uma marca indelével cujas classes sociais se deparam com uma instabilidade constante do poder político e econômico. Os partidos mais conservadores, em particular, e suas lideranças estão muito mais alinhados a interesses particulares, sobretudo partidários. Os problemas econômicos e políticos que assolam o país há décadas foram esquivados sistematicamente. O progresso econômico como planejamento de Estado sofreu ao longo do tempo com resistência dos grupos mais retrógrados e gelatinosos no campo político e econômico. O lema foi uma conciliação não como método, mas como objetivo espúrio. As decisões conciliatórias nunca tiveram um programa econômico-social sustentado em pilares que pudessem arquitetar um desenvolvimento que integrasse a população aos princípios sólidos e equilibrados da estrutura civilizatória, que poderia ser manifestado em um sistema de distribuição de renda e da riqueza equilibrada e justa.

Assim, sustentar uma renda concentrada no topo da pirâmide social não traduz a formação líquida do capital, o que provoca as condições cada vez mais perversas para o surgimento das classes trabalhadoras pauperizadas e precarizadas. Com isso, podemos apontar algumas consequências nefastas: os impostos diretos e indiretos recaem  nos mais pobres, das classes sociais mais carentes; os governos federal e estaduais impõem cortes salariais em nome das despesas e do combate à inflação; crescente concentração do capital financeiro e a explosão intencional da dívida pública em nome de credores financistas, uma dívida pública atual (Juros e amortizações da dívida) que chega a 50,78% do Orçamento Federal de 2021, equivalente a R$1,96 trilhão. Isso significa corroer o poder aquisitivo das classes menos favorecidas, vez que os impostos diretos e indiretos e o estrangulamento da renda, uns dos pilares para manter a dívida pública, recaem sobre as classes trabalhadoras e não sobre os rentistas, um sinal de que os mais pobres estão custeando os mais ricos. 

Esse problema estrutural com suas facetas não é recente. Os seus alicerces estão nas instituições arcaicas esterilizadas por crises de governos sucessórios, crises financeiras, inflacionárias e cambiais nas primeiras décadas de 1900. Ou seja, uma persistente instabilidade conjuntural e estrutural secular nas esferas financeira e política formal.

A resistência dos aglomerados econômico-financeiros, - em sua tradução hoje Faria Lima -, revela singularmente um controle de todo essa economia política, com concessões em dose homeopática ou remendos que não abalam a sua estabilidade de privilégios. Com essa estratégia, os poderes e infra poderes do executivo, legislativo e judiciário são os guardiões que acionam a violência simbólica e coercitiva, da linguagem às armas, para debelar possíveis tentativas de ruptura dessa estrutura econômica, apesar de esses poderes estarem em sua mais trágica crise institucional.

Atrelado ao cenário descrito acima como uma nota síntese, deparamo-nos com o debate espinhoso e urgente, que nos assola de forma igual: a intolerância. Na história do Brasil, as contradições de classe apresentam o preço da intolerância como ainda a superar estruturalmente. A ideologia da miscigenação do povo brasileiro, tão apregoado por Gilberto Freyre, e o mito do homem cordial, assim acenado por Sérgio Buarque de Holanda, como força motriz da boa convivência entre negros, brancos e índios, dissimulam os conflitos e os preconceitos étnico-raciais. A chamada grande mídia empresarial, em sua pauta semiológica, mostra o Brasil como um país da tolerância e do equilíbrio das relações de classes e étnico-raciais. Ao contrário, o Brasil real e profundo se encontra em uma das maiores desigualdades econômicas e sociais do mundo, fruto da espoliação da elite do capital. Uma nação que sempre sofreu marcas do racismo, da violência religiosa, de gênero, dos conflitos de terra, do extermínio indígena, das chacinas de crianças e adolescentes pobres e negros é o preço da intolerância histórica no Brasil. Daí que, sem pautar a herança perversa econômica e social do período escravocrata, a intolerância, o fundamentalismo, o autoritarismo e o preconceito étnico-racial tornarão ainda mais como verdade cruel.

Com o discurso e prática da política neoliberal, a identidade e a diversidade na convivência humana são equivalentes à omissão em um sistema opressor, individualista e injusto. Ideologicamente, o neoliberalismo pauta a diversidade cultural como baluarte da democracia e da tolerância. Nisso, a intolerância não se trata de um problema político e econômico, mas diz respeito à pluralidade cultural, religiosa, étnico-racial e liberdade de pensamento. No entanto, o neoliberalismo, em seu princípio áureo, tem como tese um Estado cuja economia de livre mercado é centralizadora, autoritária e espoliadora, com um padrão de consumo e comportamento individualista.

A intolerância determina unilateralmente o que se deve pensar, sentir e agir. Esse processo, muito bem expresso por Eugène Enriquez, quando se transforma em comportamento e pensamento único é levado ao ápice do totalitarismo, ao extremo:

Chega então ‘o tempo dos assassinos’ [...], a hora dos massacres, do ódio moído e remoído que anseia por exteriorizar-se. [...] Fazendo de cada um seu semelhante e irmão, a democracia (constantemente desviada e pervertida) criou um mundo em que o outro pode se transformar em inimigo (o que já acontecia com a psique em seus primórdios, quando o bom seio podia se tornar um mau seio). (ENRIQUEZ, 2004, p. 58).

 

 

REFERÊNCIAS.

 

BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

 

BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2007.

 

ENRIQUEZ, Eugène. O outro, semelhante o inimigo?. In: NOVAES, Adauto (Org.). Civilização ou barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

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