Antropogênese e materialismo dialético

Centenas de milhares de anos se passam e as manadas de símios antropoides transformam-se em sociedade humana. Como isso se dá? Como se estrutura essa “sociedade dos homens” (expressão do historiador catalão Josep Fontana)?

Recentemente vários membros do grupo Histedbr postaram manifestações acerca da antropologia marxista, focando em especial a questão da origem do homem, ou seja, a antropogênese. Vou colocar minha colher nesse angu, não por discordar de qualquer das manifestações, todas de alta qualidade, mas por ser assunto de meu interesse, ao qual talvez possa trazer alguma contribuição.

Antes de mais nada, uma explicação a respeito do título. Por que estou falando de “materialismo dialético” e não de “marxismo” ou de “materialismo histórico”? Em primeiro lugar, não usei o termo “marxismo” porque hoje ele designa uma ampla corrente de pensamento que incorpora múltiplas contribuições à base comum formulada por Marx em meados do século 19. Também não me referi a “materialismo histórico” porque a ênfase deste está na radical historicidade na concepção do homem e dos movimentos da sociedade humana.  Nesse sentido, usar marxismo seria pecar por generalidade, pois poderia ensejar a pergunta: qual marxismo? Da mesma forma, usar materialismo histórico fora do âmbito das assim chamadas “ciências históricas” pode causar ruído, sem embargo da nota de Marx e Engels, na “Ideologia Alemã”: “Só conhecemos uma única ciência, a ciência da história”. Com estas ressalvas, preferi materialismo dialético por ser mais próprio para tratar de uma ciência dura como a biologia, que cuida especificamente da origem do homem. Fique claro, porém, que marxismo, materialismo histórico e materialismo dialético estão fundamente e indissoluvelmente imbricados.

Chamou-me a atenção uma observação de Stephen Jay Gould (1941-2002), professor de geologia, biologia e história da ciência em Harvard, no seu livro “Darwin e os grandes enigmas da vida”[1], capítulo 26 (“A postura faz o homem”): “Engels tinha profundo interesse nas ciências naturais e procurou basear sua filosofia geral em alicerces ‘positivos’. Não viveu o suficiente para completar sua ‘dialética da natureza’, mas incluiu longos comentários sobre a ciência em tratados como o Anti-Dühring”. Prossegue Gould: “Em 1876, Engels escreveu um ensaio intitulado The Part Played by Labor in the Transition from Ape to Man (O papel desempenhado pelo trabalho na transição do macaco ao homem)”. E ainda: “Engels considera três características essenciais da evolução humana: a fala, um cérebro grande e a postura ereta”. Gould cita uma passagem desse ensaio de Engels: “Esses macacos, movendo-se no chão [após terem descido das árvores][2], começaram a abandonar o hábito de usar as mãos e a adotar um andar cada vez mais ereto. Esse foi o passo decisivo na transição do macaco ao homem”. Conclui Gould sobre a antropogênese vista por Engels: “A postura liberou as mãos para o trabalho; inteligência aumentada e fala vieram depois”.

Fui conferir. Encontrei “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem” de Engels no portal “Vermelho”[3], com tradução do espanhol por José Braz. O texto original foi manuscrito em alemão por Engels em 1876 e nessa língua teve sua primeira edição em Neue Zeit em 1896. Em 1952 recebeu edição soviética de acordo com o manuscrito alemão. 

Engels começa por enfatizar o significado do trabalho, afirmando ser ele, como dizem os economistas, “a fonte de toda riqueza”. Segue dizendo que, com o trabalho, o homem converte os materiais fornecidos pela natureza em riqueza. Mais que isso, o trabalho é “a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem”.

Como se deu essa criação do homem? Engels recorre a Darwin, para quem, há centenas de milhares de anos, vivia na parte mais aquecida do planeta uma raça de macacos antropomorfos bastante desenvolvida. Viviam em árvores e usavam as mãos para tarefas simples como colher alimentos.

O uso das mãos aperfeiçoou-as tanto que, ao descerem das árvores, esses macacos passaram a utilizá-las para outros fins e não mais para andar: “movendo-se no chão, começaram a abandonar o hábito de usar as mãos e a adotar um andar cada vez mais ereto. Esse foi o passo decisivo na transição do macaco ao homem”. E vem aí o comentário de Gould: “A postura liberou as mãos para o trabalho; inteligência aumentada e fala vieram mais tarde”.

Não resisto à vontade de citar um trecho significativo e belo de Engels: “Assim, a mão é não apenas o órgão do trabalho, mas também o produto do trabalho. Somente através do trabalho, da adaptação a operações sempre novas (...) através do emprego sempre renovado dessas melhorias herdadas em operações novas e cada vez mais complexas, é que a mão humana atingiu o alto grau de perfeição que lhe permitiu realizar as telas de Rafael, as estátuas de Thorwaldsen[4], a música de Paganini”.

Buscando elaborar uma apertada síntese, diria serem estes os passos da hominização segundo Engels: 1) Aperfeiçoamento gradual das mãos e adaptação dos pés ao andar ereto induzem transformação em outras partes do organismo. 2) A necessidade de comunicar entre os da manada perigo, oferta de alimento e outras situações leva ao desenvolvimento da laringe e daí à modulação dos sons e enfim à fala, à linguagem de sons articulados. 3) Com o trabalho e a fala, o cérebro se desenvolve em tamanho e perfeição; e, junto com ele, também os órgãos dos sentidos, o ouvido para a audição, a mão para o tato, o olho para a visão, a boca para o paladar, o nariz para o olfato.

Engels: “O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza da consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento”.

Centenas de milhares de anos se passam e as manadas de símios antropoides transformam-se em sociedade humana. Como isso se dá? Como se estrutura essa “sociedade dos homens” (expressão do historiador catalão Josep Fontana)?

Bem, aí, como se dizia antigamente, são outros quinhentos... Aí entra Marx, entra o próprio Engels – e a coisa vai longe. Mas, só para não dizerem que fugi da raia, vou citar um artigo de Hélio Schwartsman, “A aurora de tudo”, na Folha de São Paulo de 14 de agosto de 2022. Ele comenta um livro recente de David Graeber e David Wengrow, “The Dawn of Everything” (a aurora de tudo). Os autores dividem a história humana em antes e depois da agricultura. Schwartsman: “Na fase anterior, o suposto estado de natureza, as pessoas viviam de forma igualitária em bandos de coletores-caçadores de até uma centena e meia de indivíduos. Depois da agricultura, vieram os excedentes de produção e, com eles, as classes sociais, o Estado e a opressão”.

Vivemos hoje um momento muito especial da história do homem, de extrema aceleração da ciência ao lado de extrema lentidão na superação do estado de necessidade para o reino da liberdade. 

 

 

 


[1] São Paulo: Martins Fontes, 1987. Original: Ever since Darwin: Reflections in Natural History.

[2] Nota  minha, entre colchetes

[3] www.vermelho.org.br (acesso em 5 de setembro de 2022)

[4] Bertel Thorswalden (1770-1844), escultor dinamarquês, autor de obras inspiradas na mitologia grega.

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