O “descolamento” e a inversão da realidade

Desse modo, a separação entre as ideias e representações da vida material, isto é, a alienação, torna-se condição necessária e indispensável à reprodução dessa realidade. Com isso, a realidade aparece de forma invertida, fazendo com que os produtores não mais se reconheçam em sua produção, que passa a ser um objeto estranhado.

Já faz um longo tempo em que as ideias e a materialidade se encontravam absolutamente coladas, em que a ideia de perigo estava vinculada ao perigo imediatamente existente, em que a ideia de contentamento estava ligada à conquista ou à satisfação de alguma necessidade real e concreta, quando o guia da ação se ancorava no mecanismo mais primitivo do estímulo x resposta.

Contudo, na relação entre o homem e a natureza, e do homem com seus semelhantes, conforme os desafios foram sendo enfrentados, para garantir a sobrevivência, foi forçado a se transformar, desenvolveu seu cérebro e aprendeu a representar a materialidade no âmbito das ideias, mesmo não estando na presença direta e imediata dos objetos. Com isso, elas contraíram uma relativa autonomia frente à realidade e, no seu limite, por vezes, não só adquiriram aparência de independência, como se tivesse conquistado vida própria, como se inverteu a realidade e derivou-se para o idealismo, em que as ideias passam a ser entendidas como se fossem o motor da realidade.

Desse modo, alerta Engels,

 

Os homens acostumaram-se a explicar seus atos pelos seus pensamentos, em lugar de procurar essa explicação em suas necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça do homem, que assim adquire consciência delas). Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens [...]. (ENGELS, 2019).

 

Todavia, ao contrário disso, o normal seria buscar a explicação das ideias na própria materialidade. Quer dizer, partir do pressuposto de que a materialidade precede às ideias, e, portanto, de que a compreensão das ideias, das ideologias e das representações se encontra na própria materialidade.

Nesse sentido, inquire Marx,

 

Será necessária uma inteligência excepcional para compreender que, ao mudarem as condições de vida dos homens, as suas relações sociais, a sua existência social, mudam também as suas representações, as suas concepções, os seus conceitos? (MARX, 1998, p. 28).

 

Não há dúvida, portanto, de que, conforme muda a realidade, também mudam as ideias, as representações, as ideologias e as teorias acerca dessa realidade. O problema, porém, não está propriamente na relativa autonomização das ideias e da materialidade. Pois, isto é uma conquista do próprio desenvolvimento humano. O problema aparece quando se conjuga esta conquista com a sociedade de classe, como é o caso da sociedade capitalista, em que os produtos do trabalho são expropriados dos produtores/trabalhadores pela burguesia, que nada produz, e os concentra em pouquíssimas mãos.

Nessa configuração, aquilo que representou uma forma de desenvolvimento, a possibilidade de trabalhar com as ideias independentemente da materialidade imediata, articulada à divisão social, transforma-se num meio e instrumento de dominação. Desse modo, a separação entre as ideias e representações da vida material, isto é, a alienação, torna-se condição necessária e indispensável à reprodução dessa realidade. Com isso, a realidade aparece de forma invertida, fazendo com que os produtores não mais se reconheçam em sua produção, que passa a ser um objeto estranhado.

Esse processo de “descolamento” e de inversão da realidade, que começa a ser legitimado ideologicamente com Platão na Grécia Antiga, que divide o mundo em dois, o mundo sensível e o mundo das ideias, adquire novos contornos na medievalidade, quando a realidade passa a ser compreendida como uma determinação divina, agrava-se, sobremaneira, na modernidade quando a burguesia assume o poder, e se aprofunda no atual momento, em que ela abandona sua preocupação com um projeto civilizatório, e concentra sua preocupação na manutenção do poder.

Aí, no intuito de manter seus interesses, utiliza-se das fake News, das máquinas de propaganda e das deepfakes como instrumentos deliberados de manipulação, ilusionismo e enganação social. Desse modo, ao invés dos indivíduos se guiarem pela realidade concreta, norteiam-se por representações falsas e invertidas de si mesmos, do que são e do mundo. Consequentemente, as pseudoverdades adquirem um caráter de verdade absoluta.

É isso, por exemplo, que explica o fato de um governo que ataca os trabalhadores, os negros, as mulheres, os homossexuais, os professores e o funcionalismo público, que destrói os direitos sociais, ataca as instituições e a democracia, que vive, alimenta e retroalimente a mentira, que faz da “mentira o critério de verdade”, como é o caso do “inominável”, gozar de um índice assaz elevado de apoio social. Ou seja, a impressão que se tem é que de fato as ideias e representações se descolaram da materialidade e passaram a ser autônomas e autônomas, dando vazão ao relativismo cognitivo absoluto.

O paradoxo é que, enquanto a classe dominante necessita trabalhar com a materialidade e a realidade concretamente existente para garantir seus interesses, em sentido contrário, transforma a manipulação e a alienação em armas na tentativa de perpetuar a dominação sobre os trabalhadores.

Contudo, mesmo a despeito de todas as ilusões, as representações falsas e as ideologias encontram sua explicação e razão de ser na materialidade, na etapa de desenvolvimento das forças produtivas materiais e no modo de produção existente em cada momento. Daí a necessidade de se buscar tanto a explicação de toda a “porcaria existente”, quanto os meios de sua superação, nessa mesma realidade.

 

 

Bibliografia

 

ENGELS, Friederich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1876/mes/macaco.htm>. Com acesso em: 18.08.19.

MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Prólogo de José Paulo Neto. SP: Cortez, 1998.

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