Golpe, eleições e os limites do compromisso burguês com a democracia

Não importa se é um bufão ou se é o “príncipe da sociologia brasileira” a ocupar a cadeira presidencial. A destruição dos direitos trabalhistas e previdenciários sempre fez parte da pauta de interesses da burguesia.

O Partido Liberal sacramentou, em 24 de julho de 2022, a candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro, havendo sido apresentado, na ocasião, o ex-ministro da Defesa Braga Netto como vice na chapa para as eleições deste ano.

 

Nada de novo no front. O evento foi marcado pelo tom golpista e com críticas infundadas às urnas eletrônicas e de questionamento ao Supremo Tribunal Federal (STF), em uma ameaça explícita de golpe. Não que este já não tenha ocorrido. Isso porque a chamada “Constituição Cidadã”, de 1988, rasgada e remendada conforme os interesses do capital, apodrece em praça pública e o golpe já ocorreu em 2016, seguidos de outros, como a reforma trabalhista e da previdência, além dos assassinatos sistemáticos de lideranças populares.

 

Além do exposto, é importante observar a exaltação do ódio às esquerdas – presentes nas manifestações presidenciais –, os decretos para liberações de armas, os pedidos de impeachment engavetados por Arthur Lira – presidente da Câmara e aliado incondicional do presidente –, etc. Se tudo isso já não fosse suficiente, a declaração sobre as eleições, do general Luís Carlos Gomes Mattos, presidente do Superior Tribunal Militar (STM), no dia 27/08/2022, não significa, como querem alguns, o abandono do viés golpista.

 

Nós temos uma Justiça Eleitoral, e ela é a responsável pelo funcionamento real daquilo [eleições]. Nossa missão é diferente, não temos que nos envolver. Temos que garantir que o processo seja legítimo e tudo. Essa é a missão das Forças Armadas[1].

 

Como podemos notar, não é razoável supormos – apesar de alguns órgãos de imprensa afirmarem o contrário – que as Forças Armadas aderiram às regras do jogo. Afinal, para o ministro trata-se de “garantir que o processo seja legítimo”. No entanto, que garantias de legitimidade pode oferecer uma instituição marcada pela participação em golpes de Estado em nossa história? A formação de oficiais nas Forças Armadas mudou substancialmente após o fim da ditadura de 1964-85? Algum General Presidente, oficial – ou mesmo torturador – foi punido pelos crimes que cometeu?

 

É importante não esquecermos também das milícias armadas e a crescente aposta no confronto diante das pesquisas que indicam a derrota do atual presidente. Em Balneário Camboriú, o atual mandatário declarou “ter um exército que se aproxima de 200 milhões de pessoas”. Durante o discurso, em tom golpista, Bolsonaro voltou a afirmar que “tomará decisões que 'precisam ser tomadas’”. Para o ocupante do Palácio do Planalto, não há outro resultado possível que não seja a sua vitória. Nesse raciocínio, o que se entente por democracia seria a aliança “sagrada” entre o exército e “povo”, guiado pelo “mito”, intérprete dos interesses da “nação”.

 

Ora, diante de tantas evidências, seria o caso de acreditarmos que as “instituições” funcionam normalmente e que não haverá golpe? Mais do que nunca, é necessário deixarmos as crenças puritanas de lado e compreender que não é necessário tanques nas ruas e o fechamento do Congresso ou do Supremo para que este se efetive. Os acontecimentos de 2016 constituem uma prova cabal das novas artimanhas da burguesia para defenestrar da presidência quem não lhe aprouver.

 

Dessa forma, é importante considerarmos que, ainda que Bolsonaro não personifique a liderança dos sonhos burgueses, não há como negar que ele assegurou o cumprimento das reformas pretendidas pelo capital. Não importa se é um bufão ou se é o “príncipe da sociologia brasileira” a ocupar a cadeira presidencial. A destruição dos direitos trabalhistas e previdenciários sempre fez parte da pauta de interesses da burguesia.

 

Porém, há outra carta sobre a mesa. Diante da correlação de forças e das divisões no interior da burguesia, a possível vitória da chapa Lula-Alckmin, tal qual indicam as pesquisas, não seria um mau negócio para o capital. A adesão do deputado Neri Geller (PP-MT)[2] à candidatura de Lula constituiu mais um fato emblemático da divisão no interior das classes dominantes.

 

Para além do apoio de segmentos do agronegócio, outras lideranças da burguesia – sem citar os nomes dos presidenciáveis em disputa – passaram a defender, com cinismo, o respeito às “instituições democráticas”. A Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) confirmou em 27/08/2022 que assinou a Carta Manifesto “Em Defesa da Democracia e da Justiça”, documento redigido pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e que será publicizado no dia 11 de agosto em evento a ser realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

 

Muito distante de qualquer desejo “democrático”, a não ser a democracia burguesa, em um país em que a miséria e a fome atingem milhões de brasileiros, com a destruição dos direitos trabalhistas e a uberização do trabalho, Febraban e Fiesp buscam o distanciamento necessário de um projeto que ajudaram a construir em um passado não tão recente. No entanto, como esquecer que a Fiesp forneceu almoço, café e internet móvel aos manifestantes que pediram a saída de Dilma do governo nas manifestações de 2016 em nome do “combate à corrupção”? Como esquecer que industriais e banqueiros financiaram a repressão e a “máquina” de torturas no pós-1964?

 

O comprometimento com os valores “democráticos” (burgueses) também pode ser reconhecido em um vídeo do diretor-presidente do Bradesco, Octavio de Lazari Junior, com elogios ao Exército Brasileiro: "Sou o CEO presidente do banco Bradesco, onde trabalho há 43 anos. Mas há quatro décadas, eu me apresentava assim: soldado 939 Lazari, ao seu comando". No mesmo vídeo, ele afirma ter aprendido e reforçado valores que já trazia de casa ao longo da formação no Exército. Em 2018, com a eleição de Bolsonaro, Lazari afirmou em nota que “[a] partir deste cenário, nos sentimos revigorados para dar início a um novo ciclo de reformas estruturais no sentido de modernização do Brasil” [3].

 

Que reformas estruturais projetava com sentimento revigorado o CEO presidente do Bradesco? Seria a reforma previdenciária que beneficiou os fundos privados de previdência? Seriam as privatizações prometidas por Paulo Guedes? Seriam as reformas que promovessem “mais desigualdade, não menos”, tal qual afirmou o empresário Winston Ling?[4]

 

Não bastasse o cinismo de nossos homens de negócios, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, afirmou a confiança no sistema eleitoral brasileiro e o compromisso dos EUA e o governo Joe Biden com o Estado Democrático de Direito. O que significa esse compromisso, senão palavras vazias? O histórico de intervenções estadunidenses ao longo de sua história não nos permite acreditar em suas crenças pseudodemocráticas.

 

Por outro lado, um possível governo Lula-Alckmin manterá a estratégia da conciliação de classes, presentes nos governos do PT, entre 2003 e 2016? Não se trata de negar, aqui, os avanços ocorridos no período ou o caráter pragmático e eleitoral assumido pelo PT em sua trajetória, mas de compreendermos a importância de derrotarmos o fascismo de Bolsonaro nas próximas eleições. Trata-se de reconstruir as forças populares, de modo a acumular forças para as lutas vindouras, sem nos esquecermos de que a correlação de forças continua amplamente favorável ao capital.

 

Por isso, mais do que nunca, será necessário o fortalecimento das lutas populares, que mobilize milhões de trabalhadores. É urgente o trabalho de formação nos bairros, nas fábricas, nas escolas, nas universidades e em outros espaços possíveis. Isso porque não nos parece razoável subestimar o fascismo e sua capacidade de destruição. Não há garantias que um novo golpe será evitado e não basta derrotar Bolsonaro no 1º turno. A luta continuará nos anos vindouros. É uma questão de sobrevivência para todos. As conquistas e os avanços dos trabalhadores como classe não será obra e graça do capital, mas fruto da luta organizada daqueles que não têm mais nada a perder, a não ser os seus grilhões.

 

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