Religião e processos revolucionários

Marx e Engels não desenvolvem uma critica sistemática à religião, mas consideram em suas reflexões o significado do desocultamento das relações e contradições que sustentam essa forma ideológica, criticando a sociedade que produz e se nutre da religião a serviço da exploração humana no capitalismo.

Observa-se uma tendência crescente de associação entre religião e política dentro de uma perspectiva reducionista. O foco dessa associação está na manipulação e exploração dos mais desprotegidos e fragilizados econômica e socialmente por meio da politicagem e da alienação. A “bancada da Bíblia” e suas manobras, (associada a “bancada do boi” e a “bancada da bala”) expressa essa realidade ao institucionalizar a exploração e a alienação, contribuindo para a difusão de uma religião manipuladora que conduz a degradação humana no contexto histórico atual no Brasil.

Religião e processos sociais e políticos porém, nem sempre estiveram associados apenas à  condição e expressão de alienação.  Em uma interpretação  que utiliza a teoria marxista do materialismo histórico dialético, torna-se possível saturar de historicidade  essas realidades permitindo atingir e aprofundar as contradições históricas que as engendram. Historicamente existem inúmeras experiências de articulação orgânica entre religião  e processos revolucionários que evidenciam isso, mostrando que no interior das contradições do capital pode emergir uma força material que leve a produzir a construção de relações sociais alternativas progressistas e até revolucionárias no processo da luta de classes. Esse tem que ser o esforço permanente dos setores progressistas e revolucionários  no sentido  da destruição do imobilismo e do pessimismo sem esperança e desarticulador.

As experiências de Cuba, Nicarágua,  El Salvador e Brasil, apenas para citar algumas experiências de articulação orgânica  entre religião e processos revolucionários, podem ser destacadas como exemplos. Cada uma, é claro, guardando suas particularidades históricas mas mantendo sua gênese de gestação  nas contradições do processo de estruturação histórica do capitalismo e de sua sociabilidade.

Buscando algumas fontes históricas que sustentam esse argumento, encontram-se  Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, dentre outros.

Engels considera a religião como expressão do movimento histórico que pode se manifestar de muitas maneiras articulada aos processos estruturais, conjunturais ou tópicos de uma sociedade determinada. Religião como expressão histórica humana pode assumir para Engels diferentes formas nas relações objetivas que são  travadas historicamente  podendo ser reacionária, reformista, conservadora, progressista e,  em um contexto histórico de acirramento da luta de classes, assumir a configuração revolucionária. Mas está  sempre referida à base material da sociedade que a produz. Os escritos de Engels  constituem uma valiosa ferramenta teórica para a compreensão de manifestações religiosas como as ocorridas tanto na América Central como no Brasil, como por exemplo,  a Teologia da Libertação.

Na mesma direção  de Engels, Marx ao fazer a critica da religião está implicitamente realizando a crítica da realidade social, ou seja, das condições materiais da existência. Para Marx o que importa é desfetichizar a manifestação religiosa existente na sociedade, em suas formas de sociabilidade política que tende a apagar a violência , a exploração e a opressão humana. Com esse esforço teórico e metodológico de criticar a religião como crítica às  condições materiais que a produz , Marx indica um dos caminhos da emancipação humana do jugo dos fetiches. Marx não  escreveu nenhum texto especifico sobre religião, política e sociedade. O que pode ser observado em seus escritos refere-se ao tratamento que  é  dado a essa questão como pertencente a superestrutura ideológica,  portanto como  ideologia religiosa subsumida pela produção material da sociedade,  pela base econômica da sociedade e  pelas relações sociais por ela produzidas. O tratamento da religião, como uma das formas ideológicas da superestrutura por Marx, pode ser comprovada no Prefácio a “Para a Critica da Economia Politica" de 1859, quando considera:

“A totalidade das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona em geral o processo da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. (...) Com a transformação da base econômica, altera-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais transformações é necessário sempre distinguir entre a transformação material que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção - e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo,  as formas ideológicas. “ (Marx, 1982)

Marx critica Feuerbach porque este filósofo explica a religião sem explicitar sua base material, seu fundamento, suas raízes objetivas que é a sociedade concreta que produz a religião  como forma mistificada  da realidade. Na Tese IV sobre Feuerbach,  Marx coloca que:

“Assim, por exemplo, uma vez descoberto que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser criticada na teoria e revolucionada na prática. “ (Marx, 1978)

Marx e Engels não estão indicando que o indivíduo renuncie a sua religião particular para que possa alcançar sua liberdade política.  Eles estão preocupados não com a libertação política ilusória e imediata mas, com a emancipação  humana  que se realiza para além desse falso antagonismo, isto é, na plena emancipação humano-social da sociabilidade capitalista. Marx compara o fetichismo da religião (em que Deus aparece como autônomo e poderoso) com o fetichismo da mercadoria (em que o produto do trabalho humano surge como independente de seu produtor). O trabalhador não é sujeito de seu próprio trabalho.

Para Marx e Engels o homem somente se libertaria da religião que produz alienação e não  emancipação, se libertando das condições de vida opressora a que é  submetido. A tarefa da História é de desmistificação dessas relações ilusórias entre religião, política e emancipação humana e social, expondo a estrutura das relações de classe baseada na exploração, na violência e na opressão que leva o homem a buscar alívio de seus sofrimentos em um plano imaginário.

Marx e Engels não desenvolvem uma critica sistemática à religião, mas consideram em suas  reflexões o significado do desocultamento das relações e contradições que sustentam essa forma  ideológica,  criticando a sociedade que produz e se nutre da religião a serviço da exploração humana no capitalismo.

No entanto, para Marx e Engels nem toda forma religiosa está a serviço da opressão e do apagamento das contradições e da exploração, como “ópio do povo". O cristianismo primitivo em que não havia propriedade privada é considerado como exemplo de que é possível antecipar os germes da emancipação humana para além das diferenças de classes.

Engels publicou em 1895 um livro específico sobre essa questão: Contribuição para a História do Cristianismo Primitivo.

Esse cristianismo originário representava a dimensão ontológica da luta contra a opressão do Império Romano.

Rosa Luxemburgo também se dedicou a essa questão em O Socialismo e as Igrejas(1905)  em que investiga a trajetória do cristianismo que se transforma de religião dos oprimidos em religião oficial.

O que é significativo de ser destacado neste debate é que mesmo que a religião tenha surgido em condições de opressão existencial e, depois, se reproduzido na forma de dogmas, é  importante historicizar também esses dogmas como sendo ideias  produzidas em condições históricas específicas e determinadas. Só assim se torna possível compreender historicamente a questão da religião em sua totalidade e contradições bem como o papel que ela pode desempenhar na sociedade.

 

LEITURAS SUGERIDAS

ENGELS, F. O Cristianismo Primitivo, Rio de Janeiro: Ed. Laemmert, 1969.

FREI BETTO. Fidel e a Religião, Rio de Janeiro: Ed. Fontanar, 2016.

LÖWY, M. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

LUXEMBURGO, R. O Socialismo e as Igrejas: o comunismo dos primeiros cristãos, Rio de Janeiro: Achiamé, 1980.

MARX, K. “Prefacio” Para a Critica da Economia Politica.  Obras Escolhidas,  Editorial “Avante", Edições Progresso  Lisboa-Moscovo, 1982.

MARX, K  Teses contra Feuerbach – Manuscritos Econômicos Filosóficos e outros Textos Escolhidos. Marx, Coleção “Os  Pensadores”, 2a. Edição- São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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