Alfredo Bosi e a Cultura

Assim, da agricultura (ou cultura da terra, do campo) Bosi nos leva à cultura antropológica, social, espiritual. Pontifica ele: “Cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro”.

Logo após o falecimento de Alfredo Bosi em 7 de abril último, escrevi uma crônica, publicada na imprensa de Campinas, com o título “Tirando de letras”, tendo dedicado um dos tópicos ao triste decesso.

Abordo hoje, nestas Colunas do HISTEDBR, a Dialética da Colonização, no meu entender a obra-prima de Alfredo Bosi. Dela destaco o primeiro capítulo, “Colônia, Culto e Cultura”. “Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã”. Assim inicia Bosi esse texto antológico. E assim realmente faz, começando pelas palavras cultura, culto e colonização. As três – quem diria? – têm sua origem no mesmo verbo latino colo, que dá cultus no particípio passado e culturus no particípio futuro. Sem maiores gramatiquices, salta aos olhos que de “colo” vêm “colônia” e “colonização”; de “cultus” vem “culto”, o ato de lembrar os mortos ou de reverenciar o divino; e, enfim, de “culturus” deriva a nossa questionada “cultura”. Mas aqui é preciso aclarar melhor como se deu o processo.

Na língua de Roma, ensina Bosi, colo significou “eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo”. Culturus, como ação ou projeto de futuro, é “o que se vai trabalhar, o que se quer cultivar”. Para os antigos romanos significava as práticas do amanho da terra que deveriam ser aplicadas nos tempos vindouros para garantia da sobrevivência humana. Por aí se vê que a cultura mantém até hoje seu “significado mais geral”, claro que ampliado, de “conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir”, de geração a geração, “para garantir a reprodução de um estado de coexistência social”. Assim, da agricultura (ou cultura da terra, do campo) Bosi nos leva à cultura antropológica, social, espiritual. Pontifica ele: “Cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro”. Tenho que me conter. Mas não posso deixar de dizer que ele vê nesses planos para o futuro a “dimensão de projeto”, que estaria presente, no seu sentir, no mito de Prometeu, “que arrebatou o fogo dos céus para mudar o destino dos homens”. Momentos altos dessa dimensão histórica seriam a Renascença florentina, as Luzes dos setecentos e as revoluções científicas, técnicas e sociais derivadas dessa iluminação, desse “Esclarecimento” (Aufklärung) que, para o alemão Immanuel Kant, era o momento da conquista da autonomia do homem. As revoluções socialistas também receberam suporte ideológico dessa visão iluminista, conforme nos mostra Bosi, um gramsciano à sua maneira.

A forte amarração, que Bosi nos mostra desde sua raiz na língua, entre cultura e realização humana pelo conhecimento de suas determinações e pelo projeto de melhorar a existência e a coexistência, foi também apontada por Carlo Ginzburg, o notável autor de O Queijo e os Vermes: “Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um”. Nesse mesmo prefácio ao livro em que narra o cotidiano e as ideias de Menocchio, um moleiro do Friuli perseguido pela Inquisição, Ginzburg ainda sentencia que “da cultura do próprio tempo e da própria classe não se sai a não ser para entrar no delírio e na ausência de comunicação”. Mas outro italiano, Antônio Gramsci, não disse que era necessário negar certa cultura de classe e criticar o senso comum para se chegar a uma cultura de libertação? Como se vê, na aparência contraditória, a visão de Ginzburg e a de Gramsci, enaltecida por Bosi, são convergentes.

O bom poeta tem necessariamente uma visão teórica correta da cultura? Nem sempre. O grande T.S. Eliot, autor de The Waste Land (“A Terra Desolada”), talvez o mais belo, mais denso e mais profundo poema jamais escrito, publicou também, enveredando para o ramo ensaístico, Notas para a Definição de Cultura, um livro menor.   Cláudio Wiiller, um dos “Novíssimos” de Massao Ohno em 1960, prefaciando a edição atual das Lamentações de Fevereiro de Paulo Marcos Del Greco, diz que este poeta, que entronizava Eliot no Olimpo da poesia, tinha com o anglo-americano dos Four Quartets uma grande diferença: o reacionarismo deste, configurado, por exemplo, em The Idea of a Christian Society (“A Idéia de uma Sociedade Cristã”), em que Eliot apresenta o “retrato – equivocado – da Idade Média como sociedade harmoniosa, supostamente equilibrada em sua estratificação bem delimitada, voltada para o sagrado”. Curiosamente, The Waste Land foi dedicado por Eliot a Ezra Pound, outro genial poeta do modernismo no início do século XX, porém com visão histórica acanhada a ponto de flertar com o fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler.

Mas isso nem sempre acontece com os bons artistas do verso. Aqui mesmo no Brasil tivemos um excelente poeta, Ferreira Gullar, colocado por Sérgio Buarque de Holanda nas culminâncias de sua arte e por Vinicius de Moraes como autor do mais belo poema da literatura nacional e até mundial, o “Poema Sujo”, e que, na área do ensaio, prima pela lucidez com seu engagé livro de 1964 ‘Cultura posta em questão’. O fato de Gullar, cinquenta anos depois, ter desvestido a camisa do socialismo, com a qual viajou para o exílio nos anos de chumbo, não significou perda do seu ideal de libertação humana, mas apenas desilusão com uma visão política que considerou “fracassada”.

Com Ferreira Gullar ou com T. S. Eliot, com Ezra Pound ou com Vinicius de Moraes, o certo é que a cultura continua um nó difícil de desamarrar. Penso que Alfredo Bosi foi um dos poucos a desatarem esse nó.

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