No período anterior à epidemia global, ou pandemia, muitos países viviam ondas de protestos contra as desigualdades, a corrupção e a falta de proteção social. Cessarão tais movimentos? Para ele, com a volta ao normal, os protestos até recrudescerão. Como atender aos reclamos das sociedades?
Vou falar, nesta coluna do HISTEDBR, da proposta de virada apresentada pelo pensador e sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Virada aqui é o que esse intelectual luso denomina “viragem” e corresponde, forçando um pouco os termos, à nossa velha, cantada e decantada “revolução”. Mas, como se verá a seguir, é essa nossa antiga conhecida e algo mais.
Para começar, quem é Boaventura de Sousa Santos? Vamos resumir. Nasceu em Coimbra, Portugal, aos 15 de novembro de 1940. Tem, pois, oitenta anos. Mas com a vitalidade e a garra das vinte e cinco primaveras. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Em Berlim fez uma pós em filosofia do direito. Doutorou-se em sociologia do direito pela universidade estadunidense de Yale. Jubilou-se como professor catedrático do curso de ciências sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Foi agraciado com a Ordem do Mérito Cultural. De seu currículo consta vasta obra, da qual destacarei aqui apenas cinco títulos: Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, Epistemologias do Sul, Reinventar a democracia, A difícil democracia: reinventar as esquerdas e Esquerdas do mundo: uni-vos! Nada mal, não é?
Boaventura vem de publicar interessante artigo, que mexe com a gente: “O futuro pode começar hoje”. Antes de fazer sua recensão, é preciso dar duas palavras sobre o pensamento de Sousa Santos e referir, desde logo, que esse artigo tem foco no “novo normal” que deverá suceder à atual pandemia de covid-19.
Vamos então às linhas gerais do que pensa Boaventura de Sousa Santos. Ele mesmo aceita a etiqueta que lhe pregam de “sociólogo”. Mas vai além. Sem cair na armadilha das rotulações, diria que é um pensador e que circula por vários departamentos da filosofia e das ciências humanas. Talvez um humanista de esquerda, ou da nova esquerda, que mira o socialismo com aprofundamento da democracia. E chega de rótulos!
Boaventura tem uma proposta de escrita das ciências sociais contemporâneas de natureza crítica. Sua proposta passa pelos campos da epistemologia, da sociologia do direito e da teoria da democracia. Tendo tais miradas em seu horizonte, é impossível que sua proposta não tangencie o marxismo. Não só tangencia como ainda se autoproclama tributária da teoria marxiana, porém com a viseira erguida e numa perspectiva de superação crítica. É bom lembrar que a superação, em alemão Aufhebung, é categoria central do pensamento de Marx, que a tomou de Hegel, justamente superando-o, isto é, mantendo seu núcleo válido e relendo-a em outra ótica.
Basicamente (e aqui retomo algumas reflexões apresentadas por Rodrigo Bischoff Belli no “6º Colóquio Marx e Engels”), Boaventura contrapõe ao que considera o monoculturalismo de Marx (só há uma forma de saber que leva à emancipação social) seu multiculturalismo (diversos saberes podem conduzir à libertação); considera o marxismo como fruto da racionalidade moderna e da sua forma de sociabilidade e propõe a superação de seus limites rumo a uma nova sociedade fundada na amplitude de visadas e de interesses (pós-modernidade?); e, enfim, projeta superar a ação conformista que, aceitando o progresso da atual sociedade, baseado no desenvolvimento das forças produtivas, intenta acelerá-lo e assim acirrar suas contradições que fatalmente levarão ao socialismo.
Não discutirei aqui as premissas de Boaventura. José Paulo Netto já o fez excelentemente, em trabalho sobre Lukács e a ontologia do ser social. Partirei dos pressupostos de Sousa Santos para a prometida recensão de seu recente artigo, que culmina com a tal virada do título desta coluna.
Boaventura, fiel a seu multiculturalismo, afirma que a atual pandemia abre às sociedades diversas alternativas para que se adaptem a novos modos de viver, num retorno à “normalidade” não muito normal. Isso posto, ressalva que tal regresso não será “igualmente fácil para todos”. Por quê? Porque a normalidade anterior à pandemia já era questionável pela desigualdade social, pela democracia pouco democrática praticada, em poucas palavras, pelo caos capitalista em que se vivia. Para o sociólogo luso foi essa normalidade contraditória “que conduziu à pandemia” e – pergunta ele – “conduzirá a outras no futuro?”
No período anterior à epidemia global, ou pandemia, muitos países viviam ondas de protestos contra as desigualdades, a corrupção e a falta de proteção social. Cessarão tais movimentos? Para ele, com a volta ao normal, os protestos até recrudescerão. Como atender aos reclamos das sociedades?
Para Boaventura, o caminho passa pela organização da cidadania, “partidos políticos, movimentos e organizações sociais, mobilização espontânea de cidadãos e cidadãs”. Organizada, a cidadania terá que superar “a separação entre processos políticos e processos civilizatórios”, como se a tomada do poder e a adoção de políticas de defesa do ambiente ou de identidade de gênero fossem divididas por um muro simbólico intransponível. Em outras palavras, a esquerda política nada teria a ver com posturas ecológicas ou igualitárias de gênero. Essa separação implicava a ideia de que “não havia alternativa ao capitalismo e a tudo o que ele acarreta”. As esquerdas engoliram a isca, caíram na armadilha.
Por isso, Boaventura propõe uma virada completa em direção a “uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios”. Nas suas palavras, “uma viragem epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no planeta”. Essa virada, ou viragem, é o exato oposto da “viradeira” de Dona Maria I, que fez Portugal regredir ao momento anterior aos feitos ilustres de Dom José I e de seu ministro o Marquês de Pombal.
Para promover a virada, ou viragem, ou viradeira, é preciso atender ao apelo do título de um dos livros de Boaventura de Sousa Santos: “Esquerdas do mundo: uni-vos”.