GLOBALIZAÇÃO, TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E EDUCAÇÃO (INTER)NACIONAL (1984...)
Lalo Watanabe Minto [1]
A derrocada da Ditadura Militar representou uma importante mudança no cenário político brasileiro na década de 1980. A chamada “transição democrática” levou a termo o processo de abertura “lenta, gradual e segura” iniciada pelo Governo Geisel (1974-9) e combatida pela chamada linha dura do Exército brasileiro. A democratização consistia, de um lado, na destituição dos militares do poder após 21 anos; de outro lado, marcava a ascensão de importantes movimentos sociais organizados, que fizeram dos 80, não a “década perdida”, mas um período de intensa mobilização social e de conquistas importantes na história da educação brasileira. Esta ascensão inaugurou, também, uma intensa participação social nos processos decisórios do Poder Legislativo brasileiro, nunca antes testemunhado na história, cuja culminância ocorreu no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988.
A abertura política do país, entretanto, não ocorreu como movimento histórico autônomo, ainda que marcado por diversas contradições. Situava-se dentro de um contexto de mudanças nas relações políticas internacionais, relacionadas ao processo de reestruturação capitalista que tem início nos primeiros anos de 1970. A revolução tecnológica de base microeletrônica, geradora da tecnologia da informática, criou novas bases materiais para a expansão do capital. O processo da globalização tornava possível a ocupação de amplos espaços do globo terrestre, bem como de setores da produção e da reprodução das relações sociais (como as políticas sociais, por exemplo) até então não determinados inteiramente pela lógica do capital. As forças do capital encontravam-se progressivamente livres de suas barreiras nacionais (territoriais) e de seus limites técnicos, o que abria possibilidades inéditas de expansão/acumulação.
Tratava-se de um novo ciclo de expansão do capital, para o qual o neoliberalismo – que havia surgido, nos anos 1940, como reação ao Estado do bem-estar social e a toda e qualquer forma de controle social sobre o capital – apresentava-se como ideologia ideal. Isso ocorreu na forma de uma nova onda de “liberalização” da economia e das sociedades capitalistas concretizada pelas políticas de desconstrução do Estado providência, dito “interventor”, em prol de um Estado máximo para o capital: sem regulamentação sobre a circulação de capitais (sobretudo o financeiro), sem políticas sociais, sem sistemas públicos de educação, saúde e previdência social, com o mínimo de direitos trabalhistas etc.
A redução dos gastos sociais como uma das premissas essenciais do neoliberalismo, abria horizontes sombrios para o futuro da educação. A política educacional típica do período consistiu em reformar: reformar para tornar eficiente e eficaz a educação; reformar para adequar a educação aos ditames do novo paradigma da acumulação capitalista; reformar para flexibilizar as relações de trabalho entre os trabalhadores da área; reformar para criar mecanismos de controle (avaliação e autonomia) do ensino e da produção científica; reformar para tornar a forma de organização e gestão do ensino apto a converter-se em campo de domínio do capital e da produção de mercadorias.
As lutas sociais que haviam adquirido força e presença política nos anos 80, conquistando importantes mudanças na Constituinte de 1987-8, passaram a ser desconstruídas tão logo foi promulgada a Constituição. No campo educacional, a liberdade concedida ao capital traduzir-se-ia pela ampliação progressiva de seu campo de ação, dando continuidade e ampliando a tendência privatizante dos anos da Ditadura Militar. Uma das maiores perdas para o ensino público, nesse sentido, ocorreu na própria Constituição Federal de 1988, que não garantiu a exclusividade de recursos públicos para os estabelecimentos de ensino mantidos pelo Estado, abrindo uma brecha – que, aliás, ainda não foi fechada – para o setor privado apropriar-se de novas fatias do fundo público para a educação.
A incorporação cada vez maior das demandas do setor privado na política educacional brasileira, consagrou também uma nova tendência, que marcou todo o processo legislativo no país nos anos 90: legislar de forma fragmentada, em doses homeopáticas, sem tratar de grandes questões num mesmo processo. O maior exemplo disso é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, de 20/12/1996), elaborada durante longos oito anos, mas aprovada de forma a deixar importantes lacunas para serem preenchidas por legislação complementar depois da aprovação da LDB. Uma lei, portanto, deliberadamente minimalista e enxuta.
Nos anos 1990, com a Reforma do Estado levada adiante nos governos de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, a reforma da educação, totalmente conformada no âmbito da contra-reforma neoliberal, ganhou contornos ainda mais evidentes. A criação de um Ministério específico para cuidar da reforma, o MARE (Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado), foi uma mostra evidente de que o grande projeto do governo brasileiro converter-se-ia na mera adaptação aos desígnios da economia internacional e, principalmente, do grande capital financeiro.
A ideologia do público não-estatal, uma das principais bandeiras divulgadas pela reforma do Estado, serviria como pano de fundo para as reformas do ensino, expressando, acima de tudo, a necessidade de legitimar a expansão do setor privado. Tal expansão utilizou-se dos mais variados expedientes, todos eles no sentido de direcionar (direta e indiretamente) volumes crescentes de recursos do fundo público para o mercado privado da educação. Também chamada de publicização, numa falsificação grosseira do seu real significado, a idéia de criar e estimular a expansão de uma propriedade pública, mas não estatal, tinha por fundamento tornar o terreno da educação mais facilmente permeável ao interesse privado. Isso vem ocorrendo, desde então, num duplo processo que, de um lado, ataca tudo o que é público (no sentido de estatal) como ruim, ineficiente, incompetente; e, de outro lado, apresenta a atuação do setor privado, tido eficiente, eficaz e “moderno”, como panacéia para os problemas educacionais brasileiros, aos quais o Estado é supostamente incapaz de oferecer solução.
A ação dos organismos multilaterais foi o outro lado da moeda das reformas educacionais no período em questão. Banco Mundial , FMI, UNESCO, entre outros, passaram a também desempenhar o papel de porta-vozes dos interesses do grande capital internacional, no que diz respeito à educação, na medida de sua necessidade de reestruturação e expansão/acumulação em diversos setores fundamentais à reprodução social. As reformas educacionais, assim como outras reformas (previdência social, saúde, trabalhista etc.), foram sendo estimuladas e orientadas por tais organismos – servindo até como uma espécie de moeda de troca política – via grandes programas de ajustes. Tais programas aqui desembarcam [2] sob a forma de programas de ajuda financeira aos mais diversos setores (destaque para educação) e de diretrizes de reformas no aparelho de Estado como um todo.
Sinteticamente, as principais diretrizes disseminadas por tais organismos são: 1) focalização do gasto público no ensino básico, com ênfase no ensino fundamental; 2) descentralização do ensino fundamental, o que vem sendo operacionalizado através do processo de municipalização do ensino; 3) estímulo à privatização dos serviços educacionais e à criação de verdadeiras indústrias em torno das atividades educacionais; 4) ajuste da legislação educacional no sentido da desregulamentação dos métodos de gestão e das instituições educacionais, garantido ao governo central maior controle e poder de intervenção sobre os níveis de ensino (através dos sistemas nacionais de avaliação e fixação de parâmetros curriculares nacionais, por exemplo), mas sem que ele mesmo participe diretamente da execução dos serviços.
O quadro que se desenvolve para a educação brasileira nos anos 90 é, portanto, quase que uma caricatura de tais diretrizes. No ensino fundamental, a tendência verificada foi a de descentralizar a ação do Estado, divulgada sob o lema da democratização. Tendência essa que gerou uma deliberada concorrência entre as diferentes esferas de governo – sobretudo entre municípios e, dentro deles, entre as próprias redes municipais e estaduais – pelos recursos da educação. O FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental), criado através da Emenda Constitucional n° 14, de 1996, para regular a distribuição dos recursos públicos para as redes educacionais dos estados e municípios, foi um dos maiores estímulos a essa nefasta concorrência. Além disso, outras diretrizes reformistas ainda estão na ordem do dia das políticas educacionais, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (os PCNs). Outras, como as avaliações, de caráter nacional, homogêneas e centralizadas, já se transformaram em medidas efetivas.
No ensino superior, a privatização é um processo ainda mais explícito e perverso, que durante muito tempo revestiu-se de um caráter velado, em grande parte apoiado na baixa abrangência de nosso ensino superior, o que vem servindo de pretexto para a ampliação do setor privado como pressuposto de uma pretensa democratização das oportunidades de ensino. De um modo geral, a necessidade de transformar o ensino superior em atividade apta a ser capturada pelo capital, fez com que as grandes políticas para esse nível de ensino tivessem como sentido fundamental a quebra de todos os obstáculos que dificultavam a sua organização como atividade rentável. A principal delas envolve a quebra do chamado “modelo único” de ensino, a saber, aquele que se pauta pela indissociabilidade entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão. Daí, por exemplo, as políticas de diversificação e diferenciação institucional.
O combate ao ensino público se fez também mediante uma remodelação conceitual que transformou uma bandeira histórica dos movimentos sociais em defesa da educação, a autonomia, em critério do capital, de caráter tecnocrático, uma mera medida da eficiência e da eficácia da gestão educacional. Observe-se, por exemplo, o discurso das “parcerias” entre Estado e setor privado e que torna a questão da universalização do ensino uma medida a ser satisfeita pelas forças do mercado.
Algo similar também acontece com a concepção de avaliação que envolve as reformas. A mesma apresenta-se como medida de controle, não da qualidade historicamente demandada por muitos setores, mas a qualidade tida como pressuposto da eficiência econômica, da “gestão responsável”, “moderna”, que otimiza recursos.
Em síntese, ao final da Ditadura Militar inaugura-se um período permeado por mudanças, complexas e contraditórias, que transfiguraram o caráter da educação brasileira. Por maiores que tenham sido as conquistas obtidas, não é de se negar que a tendência mais significativa do período foi a do reforço da privatização do ensino, em todos os seus sentidos e tendo como contrapartida a destruição, ideológica e efetiva, da educação mantida pelo Estado.
A tendência histórica do desenvolvimento capitalista pôs em evidência a capacidade de controle e de avanço, aparentemente cada vez mais fora dos limites do controle social, que as forças históricas do capital têm para organizar-se e defender os seus interesses. Nesse processo, o espaço para as políticas educacionais, como projeto de Estado, fica ainda mais reduzido e subsumido às determinações vorazes e à sede de lucro incessante do capital financeiro. Olhando para o campo educacional como um todo, observa-se que há, portanto, um movimento coordenado entre as reformas, que faz jus a duas das premissas deste Estado máximo para o capital: de um lado, a suposta incapacidade estatal de investir na educação pública, que deve economizar recursos para remuneração do capital financeiro e, do pouco que resta, privilegiar o ensino básico; de outro, por conseqüência, tomar como pressuposto que o desenvolvimento do mercado educacional é necessário à “democratização” do ensino, uma vez que o setor privado é supostamente mais eficiente na gestão dos recursos e flexível para adequar-se aos moldes da demanda dos setores produtivos e do mercado em relação à formação (a empregabilidade).
Enfim, trata-se de um movimento histórico que efetivamente retira a educação do chamado campo dos direitos sociais – construído historicamente e subordinado ao controle social – e a submete ao campo das atividades mercantis, passando a ser determinada cada vez mais pela lógica totalitária do capital.
Mas não se pode tomar esse movimento como livre de contradições e muito menos pressupor que paira sobre todos os homens, até o fim da história, o totalitarismo do capital, numa espécie de eternização das relações capitalistas. Ao contrário,
...precisamos lutar para que todos os homens tenham acesso a uma educação que os prepare para além do capital; que possibilite a todos o acesso aos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade; e, enfim, que todos os homens possam usufruir de uma educação crítica, voltada ao atendimento de toda a sociedade e centrada nos conteúdos, dentro de uma perspectiva política de transformação social. (LOMBARDI, 2005, p. xxviii)
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[1] Doutorando em Educação, na área “História, Filosofia e Educação”, pela Universidade Estadual de Campinas.
[2] É importante lembrar que tais programas e diretrizes não foram simplesmente uma imposição externa à educação brasileira. Além de terem sido concebidas também por intelectuais brasileiros, foram amplamente consentidas, do ponto de vista da política interna, pelos setores que levaram a cabo as reformas em questão.