Joaquim Gaudie Ley, um homem ligado ao comercio, se destacou no trabalho de organização da instrução publica na província de Mato Grosso em meados do século XIX. À frente da inspetoria geral de instrução publica por um longo período colocou em prática, várias ações que fortaleceram o projeto do grupo conservador na Província.
Para compreender seu papel de sujeito histórico e agente do Estado vou me fundamentar na seguinte afirmação de Gramsci. Segundo ele,
todo o homem fora de sua profissão desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um filósofo, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter, ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novos maneiras de pensar. (1995, p. 7-8).
Filho do Capitão-Mor André Gaudie Ley, homem que desfrutava de muito prestígio e poder na Província, sendo um dos principais militantes do movimento denominado de Rusga, que ocorreu em Cuiabá em 1834. Joaquim Gaudie Ley (1818 - 1876) não fugiu à regra, e passou a ocupar ainda muito jovem posição destacada na sociedade mato-grossense provincial.
O primeiro passo para o seu sucesso financeiro foi o seu casamento aos 23 anos com Catharina Dúlcia Bueno do Prado pertencente à família do barão de Poconé. Os casamentos por interesse eram práticas constantes naquele período e possibilitavam o fortalecimento político, social e econômico das famílias. (Cf. SAMARA, 1988). Em 1858, sua esposa faleceu e ele casou-se novamente em 1861, com Idalina Nunes da Cunha, sobrinha da sua primeira mulher. Os dois casamentos dentro da mesma família garantiram a consolidação de seu poder econômico e político. (MESQUITA, 1921, 84-5).
Sua atividade econômica principal era o comércio, que “(...) com atividade e pontualidade nos negócios adquiria muito crédito, e com ele excelente fortuna (...)” (FALCÃO. Citado por MENDONÇA, 1973, p. 255-6). Seu capital foi avaliado à época de seu inventário, em 304:000$000 (trezentos e quatro contos de réis), sendo que a maior parte dessa fortuna se encontrava de posse do tesouro imperial, na forma de títulos da dívida pública. (Inventário de Joaquim Gaudie Ley de 1876).[2]
Joaquim Gaudie Ley conseguiu conciliar as atividades comerciais com inúmeras outras de cunho público e social na Província. Foi deputado provincial, provedor da Santa Casa de Misericórdia, Juiz de direito e municipal, chefe de polícia, membro da Caixa Econômica e Monte Socorro, secretário da Companhia Empresário de Teatro, vice-presidente da Província e inspetor geral de instrução pública por um período de 22 anos (1849-1871). Recebeu o título de Comendador e foi condecorado pelo governo imperial com o oficialato da Ordem da Rosa. O historiador e genealogista José de Mesquita afirma, que ele recusou o título de Barão oferecido pelo Imperador. Para usufruir o referido título teria, que fazer uma doação muito generosa em dinheiro a uma instituição de caridade do Rio de Janeiro. Gaudie Ley declarou, que aceitaria o título se esta doação pudesse ser feita para a Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá. Como o Imperador não aceitou a sua proposta, ele renunciou ao baronato. (1921, p. 84).
Gaudie Ley iniciou sua carreira pública muito jovem, aos 31 anos, (1849) ocupou os cargos de chefe de polícia, juiz municipal, juiz de direito, e em novembro foi nomeado inspetor geral de instrução pública e três anos depois foi eleito para o seu primeiro mandato como deputado provincial pelo Partido Conservador.
Na Assembléia Legislativa Provincial, Joaquim Gaudie Ley ocupou o cargo de deputado fazendo parte da comissão de poderes e da de instrução pública. Nela apresentou, entre outros, o projeto, que a criou a cadeira de Escrituração Mercantil e a de Música em Cuiabá. (Ata da 1ª seção ordinária da Assembléia Legislativa Provincial de 1863).
As ações praticadas e os relatos deixados mostram a sua vinculação direta com o projeto Saquarema, ou seja, a sua lealdade ao Imperador. Em 1855, no governo de Augusto Leverger, o então deputado Joaquim Gaudie Ley encaminhou uma carta ao Imperador em nome da Assembléia Legislativa Provincial, agradecendo ao Monarca pela conservação de Leverger na presidência da Província. Na correspondência ele diz o seguinte:
Este digno delegado do Patrístico governo de V. M. I., senhor tem se feito na sua administração, credor da maior estima e consideração pela maneira com que tem sabido congregar, animar e promover melhoramentos materiais e morais da Província, traduzindo desta arte o feliz pensamento que anima o governo de V. M. I., qual o de elevar todo o Império à grandeza, para qual a Providência a tem destinado. (APEMT, Lata C, 1855).
Esta carta é uma forte evidência da sua lealdade ao Imperador e, mais do que isso é uma prova de que era um homem ilustrado gozando de muito prestígio entre seus pares e no seio de sua classe social.
Segundo referências e, também pelos sues relatórios, é possível afirmar que seu trabalho à frente do serviço público foi marcado pelo rigor, dedicação e seriedade. Mesquita é quem melhor aponta essas características:
Quer como deputado, tomando a iniciativa de vários melhoramentos de real proveito, quer como juiz, desempenhando com rigorosa exatidão os seus deveres e atribuições, quer como diretor do Ensino Público, revelando-se, através dos seus relatórios ponderados e minuciosos um funcionário dedicadíssimo aos serviços que dirigia o Comendador Gaudie foi sempre um homem de vida pública irrepreensível, padrão vivo de honestidade e exemplo edificante para seus pósteros. (1921, p. 83).
De fato, as fontes que tive a oportunidade de levantar nos arquivos, que foram produzidas por ele permitem perceber o grau de envolvimento que tinha pela causa pública. São relatos bem detalhados que trazem as suas concepções de vida, enquanto membro da elite provincial e cidadão do Império.
Uma das maiores dificuldades da pesquisa foi encontrar informações sobre o seu grau de instrução. Para ser deputado, juiz, chefe de polícia, inspetor de instrução pública, enfim para redigir relatórios, necessitava de uma certa formação. Muitos são os relatos que falam da sua ilustração, mas nenhum esclarece, de fato, o real grau da sua escolaridade (secundário, bacharel, etc.). As poucas informações disponíveis me levam a pensar que era autodidata. Falcão, à época de sua morte, destacou que Gaudie Ley em meio às suas atividades, privadas e públicas, nunca deixou de “(...) ser devotado às ciências, a que prestando culto quotidiano, em seu gabinete, tornando-se ilustrado e até recomendável em matérias sociais e jurídicas (...)” (Citado por MENDONÇA, 1973, p.255-6). Mesquita, ao fazer a genealogia da família, aponta outras pistas que reforçam o autodidatismo de Gaudie Ley: “Dedicado às ciências, o seu espírito hauria no diuturno convívio dos livros (...)”. E complementa: “era o Comendador Gaudie um patriota às direitas, levando ao extremo o seu culto pela sua terra natal, onde sempre viveu, jamais querendo dela afastar-se, mesmo temporariamente”. (1921, p. 82 e 84).
Estes relatos são insuficientes para sustentar com segurança, que Joaquim Gaudie Ley foi um autodidata, mas provar o contrário é mais complicado ainda. O fato concreto é que ele se mostrou muito bem preparado para exercer as funções recebidas, e um profundo conhecedor dos problemas e idéias de seu tempo[3].
De todas as funções exercidas por Joaquim Gaudie Ley, certamente a mais produtiva foi à frente da inspetoria geral de instrução publica. Ele se destacou na organização, na fiscalização, na difusão de idéias novas. Como membro do partido conservador provincial procurou por em prática, várias ações para difundir e fortalecer o projeto político da sua classe. A questão da moralidade pública era uma de suas bandeiras.
Para ele a instrução tinha um papel fundamental a cumprir naquela sociedade. Só ela poderia garantir melhoramento moral de seus habitantes. Nesse sentido, afirmava:
A instrução primária não é só uma dívida social para o povo; é também uma necessidade pública: sem ela a religião, as luzes, a ordem e a segurança pública dificilmente serão conservadas; pois é certo que em todos os tempos e lugares, a ignorância tem sido a mãe de todos os vícios. (Relatório de 1858).
Ao falar sobre a situação dos professores no mesmo relatório, ele fez uma declaração, que resume a condição do ser professor no Mato Grosso província. Assim ele se expressou:
Ainda não posso infelizmente falar bem de todos estes empregados, nem ao menos de sua maioria; e à vista do nosso estado ou falta de pessoal habilitado, o magistério continuará a ser entre nós salvas poucas exceções o apanágio dos indivíduos que se reconhecem incapazes de ganhar a vida de outro modo. (Idem).
O regulamento de instrução publica da província de Mato Grosso de 1837 já estabelecia uma certa obrigatoriedade de ensino, visto que previa multa aos pais, que não mandassem seus filhos em idade escolar à escola. Para ele isso seria de difícil execução, pois, “o remédio não está em imposições de penas de semelhante natureza, mas sim em criar facilidades e incentivos que convidem aos pais o mandar ensinar seus filhos”. (Idem). Nesse sentido, ele defende:
uma assistência de utensílios e de compêndios menos mesquinha do que a que se tem feito, na distribuição de alguma roupa e calçados para os mais indigentes: e, sobretudo na melhor retribuição dos mestres, para que estes tomando amor a sua profissão, dediquem-se exclusivamente ao magistério. (Relatório de 1869).
O Estado deveria criar as condições necessárias para que todas as crianças pudessem freqüentar as escolas, “pois é certo que às vezes em alunos da última pobreza brilham talentos dignos de serem aproveitados na construção de uma sociedade melhor”. (Relatório de 1858). Expressões dessa natureza refletem o pensamento e o projeto liberal, que no Brasil, também foi assumido pelos conservadores.
Gaudie Ley, em seus relatórios sempre reivindicava mais verbas para a instrução, principalmente para as crianças pobres. Ao comentar a verba de trezentos mil reis destinada a mais de 300 crianças tidas como pobres em 1869, ele fez a seguinte afirmação: “Somente um milagre se poderia fazer tal distribuição e por isso entendo que se não é possível dar-se quantia maior e que seja suficiente preferível será antes a supressão de tal verba, evitando-se assim o desgosto de muitos suporem-se desatendidos”. (Relatório de 1869).
A partir de 1858, o inspetor Gaudie Ley passou a defender nos seus relatórios, a necessidade de se tomar algumas medidas para controlar melhor as escolas particulares, que até então não eram fiscalizadas. Assim ele se expressa:
Concebe-se facilmente quão prudente seria estatuir-se que elas dependessem de licença, e mesmo da exibição, se não de completas habilitações, ao mesmo de provas de moralidade da parte de seus mestres. (Relatório de 1858).
Outra questão discutida e defendida pelo inspetor era a educação feminina, pois segundo ele uma boa educação do sexo feminino era uma garantia de uma sociedade melhor. Veja com ele se expressou:
Os pais, a quem ordinariamente ocupam tantos deveres externos, quase nunca podem dirigir os primeiros passos de seus filhos, que ficam por isso entregues aos cuidados das mães e muitas vezes das escravas, e da ignorância e vícios destas nascem os defeitos, que mais tarde vem a ser um constante motivo de desgostos. É por isso que hoje é opinião incontestada que da boa educação do sexo feminino criando-se por elas as boas mães de família, depende a boa educação da mocidade. (Relatório de 1869).
Atento há seu tempo, conhecedor dos problemas da Província, preocupado com a moralidade publica, Joaquim Gaudie Ley atuou no âmbito do Estado desempenhando, de fato, o papel de intelectual orgânico do grupo conservador na Província de Mato Grosso. Ao ocupar uma posição intermediária na estrutura de poder, executou perfeitamente a função de anel, unindo os mais distantes aos mais próximos, em torno de um mesmo ideal, ou seja, construir um Estado forte e hierarquizado, tendo como fundamento a ordem e a civilização.
Referências Documentais
Ata da 1º seção ordinária da Assembléia Legislativa Provincial em 4 de maio de 1863. Cuiabá: Instituto Memória do Poder Legislativo de Mato Grosso, 1863.
Carta do deputado Joaquim Gaudie Ley ao Imperador Dom Pedro II. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso. (APEMT). Lata C, 1855 – Documentos Avulsos.
Inventário de Joaquim Gaudie Ley, Cartório do 5º Ofício, maço 2 B n.º 17. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso. (APEMT). Ano de 1876.
LEY, Joaquim Gaudie. Relatório do Inspetor Geral de Instrução Pública de 1858. APEMT, ano de 1859, Lata B – Pasta Inspetoria Geral dos Estudos.
LEY, Joaquim Gaudie. Relatório do Inspetor Geral de Instrução Pública de 1860. APEMT, ano de 1861, Lata A – Pasta Instrução Pública.
LEY, Joaquim Gaudie. Relatório do Inspetor Geral de Instrução Pública de 1867-68. APEMT, ano de 1869, Lata B – Documentos Avulsos.
LEY, Joaquim Gaudie. Relatório do Inspetor Geral de Instrução Pública de 1869. APEMT, ano de 1870, Lata C – Pasta Instrução Pública.
Referências Historiograficas
GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a organização da cultura. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
MENDONÇA, Estevão de. Datas Mato-grossenses. 2 ed. rev. atual. por Rubens de Mendonça. Cuiabá: Casa Civil do Estado de Mato Grosso, 1973, 2 vol.
MESQUITA, José de. “O Capitão - Mor André Gaudie Ley e sua descendência (ensaio de reconstituição histórica genealógico)”. Revista do Instituto Histórico de Mato Grosso. Cuiabá: Instituto Histórico de Mato Grosso, 1921, vol. 5 a 10, segunda parte. p. 43-92.
SAMARA, Eni de Mesquita. “Estratégias Matrimoniais no Brasil do Século XIX”. In: Revista Brasileira de história. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 8, nº 15, set87/fev88, 1988, p. 91-105.
[1] Verbete elaborado por André Paulo Castanha
[2] Dentre os seus bens havia, além da casa comercial, vários escravos, animais, livros etc. O empréstimo de dinheiro aos cofres públicos por particulares tornou-se prática corrente na sociedade imperial. Esse mecanismo garantiu muito poder e prestígio a vários comerciantes da época. (Cf. CARVALHO, 1997, p. 46).
[3] No seu processo de inventário, é relatado que ele possuía setenta livros, mas infelizmente, não foram descritos os títulos.