Onde estão os Guaidós do Brasil?

"No entanto, a presença de Guaidós não ocorre apenas na dimensão jurídica, há fartos exemplos na educação, na política e na economia, minando as possibilidades de desenvolvimento do país na perspectiva de construção de um novo projeto, verdadeiramente, democrático e popular, no sentido mais radical."

O personagem da série inglesa de livros infantis “Wally” – criada por Martin Handford[1] em 1987, inspirou-me para a escrita deste breve texto, que tem a pretensão de ser apenas uma crônica. Os últimos dias dos últimos meses, aliás, dos primeiros meses deste, que será um ano inesquecível, pela dimensão da tragédia produzida pela pandemia no Brasil, levaram-me a refletir e compartilhar algumas ideias acerca do modo pelo qual se formou uma geração numerosa de Guaidós no Brasil.

Claro, todos nós, implicados com a produção de conhecimento crítico sobre a realidade que nos assombra, diariamente, sabemos que o jovem Guaidó da Venezuela representa um personagem da história recente das tentativas realizadas pelos EUA, durante o governo do ex-presidente americano, que aliava ao estilo irreverente, tosco, extravagante e violento, por excelência, um propósito explícito de intervenção americana no território da Venezuela, o que despertou um grande interesse do presidente brasileiro (com letra minúscula mesmo), de integrar essa ação militar para derrotar o governo do Presidente Maduro.

Tenhamos ou não concordância com a forma de governo da Venezuela, o que pode nos levar a um consenso é o fato de sabermos que o princípio da autodeterminação dos povos e do respeito à soberania dos países, são princípios fundamentais que constituem o alicerce das relações internacionais, pelo menos do ponto de vista do que se conhecia acerca dos tratados diplomáticos a serem respeitados. Porém, em tempos de voracidade ampliada do capital e do imperialismo, tudo que se conheceu até aqui, sobre essas diretrizes, está se diluindo velozmente. Zygmunt Bauman diria, talvez, que também se tornam líquidas as concepções, os pressupostos diplomáticos, em meio ao tsunami turbinado pelo capitalismo, em seu momento de busca desenfreada de novas formas de valorização da riqueza, quando se reduzem, em nível mundial, as taxas de lucro. Sabemos que esses processos de ampliação de lucros não estão obstados durante a pandemia. Muito pelo contrário, a capacidade de extrair lucro em todos os setores é o objetivo permanente do capital, por essa razão a doença e a morte também geram riqueza. O crescimento das fortunas das famílias que detém as empresas dos planos de saúde é um exemplo desse processo.

A busca do controle do território da Venezuela sempre teve como motivação açambarcar as reservas de petróleo ali existentes, tal como aconteceu no Oriente Médio, em que as guerras produzidas pelo imperialismo norte-americano foram focadas na obtenção do domínio sobre as riquezas e os povos daquela região. Esse modo mais explícito de violência pode ser modulado, de modo que se torne quase imperceptível, quando convém aos EUA. O caso paradigmático de outra forma de violência foi o que se deu no Brasil, com o desmonte da Petrobrás para o controle das reservas do pré-sal. Uma outra versão do imperialismo se materializou no território brasileiro, aglutinando jovens e veteranos dedicados ao exercício de mimetização do american way of life.

Para quem pensa tornar-se bem sucedido, sendo falante da língua inglesa, com garantia de sucesso, nada mais interessante do que se tornar disponível para realizar ações clandestinas, subterrâneas, perversas e criminosas contra os interesses do seu próprio país, tal como fez Guaidó, moldado inclusive fisicamente, apresentando um perfil assemelhado ao do ex-presidente Obama, para apresentar-se como o “Salvador da Pátria”. Parece que as semelhanças dessa história de Guaidó com o Brasil não são meras coincidências. Recordemos o perfil dos jovens “Juízes e Procuradores da República” que usam black-tie e que se encantam com a magia dos tapetes vermelhos e com os salões com mobília luxuosa e personagens que parecem saídos de filmes de Hollywood.

O que expressa esse conjunto de elementos senão o modo pelo qual se divulgaram conteúdos ideológicos e concretizaram ações criminosas, sob o disfarce da luta contra a corrupção, a defesa da justiça e da devoção aos “santos” do Brasil? Ora, apesar de todos os disfarces utilizados, esses argumentos inconsistentes acabaram se desmanchando no ar, de modo contundente, a partir de provas irrefutáveis, mesmo que alguns membros do STF finjam não compreender que elas são, de fato, verdadeiras, irrecusáveis e que o STJ insista em considerar que essa postura dos “magistrados” e “juristas” construtores do mainstream jurídico são corretas, legítimas e justas.

No entanto, a presença de Guaidós não ocorre apenas na dimensão jurídica, há fartos exemplos na educação, na política e na economia, minando as possibilidades de desenvolvimento do país na perspectiva de construção de um novo projeto, verdadeiramente, democrático e popular, no sentido mais radical. A atual conjuntura nos apresenta um desafio ainda maior do que o enfrentado até aqui, com a implementação da necropolítica, sistematicamente, executada pelo atual governo, conduzindo à sepultura indígenas, negros, pobres e desvalidos, de modo avassalador. A miséria se amplia, a fome dói e estamos assistindo ao desvelamento de ações ilegítimas que se processam na calada das noites em que se reúnem os representantes dos think tanks com um único objetivo: manter as formas de assalto às riquezas do país, em favor do grande capital.

“A ideia está estruturada no Projeto de Lei (PL) 5343/20ii, que, caso aprovado, necessitará de outra mudança constitucional (algo que já vem se tornando recorrente) visando a extinção dos benefícios atualmente existentes. O PL, apresentado por Tasso Jereissati (PSDB) em dezembro do ano passado, corre em tramitação no Senado sem alarde e foi elaborado por mais um think tank autodenominado independente e apartidárioiii, o Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP)[2]iv, cujos diretores e conselheiros são todos reconhecidos membros do mercado financeiro”. (Isabela Prado Callegari e Queren H. B. Rodrigues no Boletim Outras Palavras de 30/04/21).

O referido projeto pretende alterar novamente a Constituição, por meio da EC 109[3],  segregando parte dos benefícios destinados ao Bolsa Família para formação de uma poupança (Poupança Seguro Família), que favorecerá diretamente o mercado financeiro. Ao repassar para o setor bancário, um percentual do valor do benefício, justifica a redução do quantum recebido por cada família, com a criação de uma pretensa proteção social, que na realidade, significará uma diminuição do efeito multiplicador do gasto público, por meio das transferências de renda.

Caso venha a prevalecer o PL, disso resultará uma redução da demanda por bens-salário, estreitando ainda mais o mercado consumidor e desestimulando o investimento, portanto, a geração de emprego e renda. Por outro lado, o Estado estará criando mais uma fonte de captação barata de recursos para o setor financeiro, que não se reverterá em financiamento para investimento produtivo, permanecendo esses recursos na órbita da circulação financeira.

Tal projeto, caso se materialize, servirá, efetivamente, para esterilizar parte do gasto público, sob a forma de transferências, ao restringir o consumo da classe dos desvalidos, enquanto a classe hegemônica trata de expandir, sempre mais, o modo de vida própria da leisure class, aprofundando o fosso estrutural entre as classes numa sociedade de capitalismo periférico, sob o comando de um Estado autocrático que produz e amplia a exclusão e a violência. Estamos lidando com quantos Guaidós na máquina do Estado no Brasil e nos think tanks associados ao capital globalizado?

 

 


[1] “As publicações, que tinham diversos temas como pano de fundo – entre eles história mundial, praias e o futuro – desafiavam os leitores a acharem, em meio a muitas (MUITAS) figuras o rapaz de óculos redondos e roupa listrada. Ainda é possível encontrar as versões físicas do clássico, porém há de se destacar que existe uma alternativa “online”.  https://catracalivre.com.br/criatividade/onde-esta-o-wally-agora-na-internet/ acesso em 30/04/21.

[3] A EC 109 limita os gastos efetivos do Benefício de Renda Mínima ao orçamento disponível a cada ano.

 

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