Julgamento de Sócrates (parte 5): Homenagem a Mari Ferrer

"A perfeição da técnica é transformar pessoas em instrumentos jurídicos e processuais. Sócrates não é mais Sócrates, mas sim o acusado. Mari Ferrer não é mais Mari Ferrer, e sim a vítima, que 'fala' por seu representante"

Olá, tudo bem? Sou o Professor Zanin. Bem-vindo à coluna “A lei é pensar o educar”! Hoje vamos refletir sobre a última parte, a quinta, do julgamento de Sócrates, na qual abordaremos seus argumentos sobre penas, morte e maldade, comparando-os com a decisão do caso de estupro de Mari Ferrer, na qual o acusado foi absolvido.

O que significa o processo judicial? O que é uma decisão judicial? Será que a técnica jurídica se preocupa com a vida das pessoas e com a in-justiça de suas decisões? Essas são algumas perguntas que vamos pensar.

Após a condenação apertada de Sócrates (280 a favor e 220 contra), ele tem a oportunidade de propor penas alternativas à pena de morte. Começa afirmando ser impossível a pena de multa, pois não tem riquezas. Se a sua vida é fazer com que cuidem mais de si mesmos e da cidade, então merece uma pena justa e conforme o mérito de sua vida: ser sustentado pelo Estado.

Pode parecer arrogância de Sócrates propor ser sustentado pelo Estado, no entanto, diz não ser fácil no pouco tempo de apenas um dia destruir calúnias e mentiras. Se ele está convencido de não ter feito nenhuma injustiça aos outros, não pode cometer uma contra si mesmo. Não pode propor penas alternativas de prisão, exílio ou multa, pois qualquer uma delas, para ele, seria o mesmo de uma vida indigna de ser vivida!

Então, o que é uma vida digna de ser vivida? Para Sócrates, "o maior bem para um ser humano é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude (...), examinando a mim mesmo e aos outros”. Conclui dizendo que "uma vida sem esse exame não é digna de ser vivida". Uma vida calada e longe de sua cidade com certeza não seria uma vida digna, pois contrária à sua missão ética, política e divina.

Todo ser humano deve sempre, em cada caso e a todo instante, examinar se faz a coisa justa e se age de forma virtuosa, sendo preferível a morte se tal exame não for possível. Diz Sócrates: "Ninguém sabe (...) se a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e, entretanto, todos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males."

A maldade é mais veloz do que a morte. É muito mais fácil fugir da morte do que da maldade. Se seus julgadores esperassem mais um pouco de tempo, a morte viria naturalmente para Sócrates. No entanto, quiseram ser rápidos! Diz Sócrates: "Assim, eu me vejo condenado à morte por vocês, os condenados de verdade, criminosos de improbidade e de injustiça. Eu estou dentro da minha pena e vocês, dentro da de vocês."

O que deixa Sócrates tranquilo é o fato de que aquela sua voz da consciência, sinal dos deuses, sempre presente quando ele estava na iminência de fazer alguma coisa que não estivesse muito bem, não se manifestou no tribunal nem durante o processo.

Não seria maravilhosa a morte, pergunta Sócrates, se for para conversar com os deuses ou com quaisquer outros mortos antigos por injusto julgamento? Continua: "não seria sem deleite confrontar o meu com os seus casos, e, o que é melhor, passar o tempo examinando e confrontando os deuses com os seres humanos, os últimos dos quais (...) acreditam ser sábios e não são."

A perfeição da técnica jurídica é, por um lado, a de que Sócrates passou pelo processo, que teve início, meio, fim, acusação e defesa, provas e argumentação, e, por outro, a de que foi tomada uma decisão. A dogmática jurídica não se preocupa com a vida dos envolvidos no processo ou com a injustiça de suas decisões.

A técnica é perfeita quando os profissionais da área jurídica se preocupam apenas com a correção formal da sentença. A técnica é perfeita quando a vida dos envolvidos no processo é capturada nas audiências e nos autos, transformada em números e meras informações. A técnica jurídica é perfeita quando acontece a mágica transformação de fatos-vidas da sociedade em fatos-vidas do direito.

A perfeição da técnica é transformar pessoas em instrumentos jurídicos e processuais. Sócrates não é mais Sócrates, mas sim o acusado. Mari Ferrer não é mais Mari Ferrer, e sim a vítima, que "fala" por seu representante. O juiz, pouco importa seu nome, toma a decisão formal; isso é o que importa. Até hoje sinto vergonha da morte de Sócrates, da mesma forma com a decisão do caso Mari Ferrer.

A técnica jurídica é perfeita porque, a despeito da violência das injustiças, consegue, a cada caso, ser reproduzida por seus agentes técnico-burocráticos. Talvez nossa única esperança seja a de que, em casos como o de Sócrates e o de Mari Ferrer, possamos ainda gritar, em termos éticos e políticos, "isso não é justo!" ou "queremos uma vida boa e viver bem" ou “queremos uma Justiça justa”.

Obrigado pela leitura e nos vemos nos próximos textos. Não deixem de me seguir nas redes sociais: Facebook, Instagram, Linkedin, Academia e Blog “Pensar Direito”. Faça uma visita no canal “Pensar Direito”, no YouTube. Se quiser fazer contato, aqui está meu e-mail [fabriciozanin@gmail.com]. Abraços, abra-se e “bora pensar direito!”, Prof. Zanin.

Imagem: