A escola civico-militar impõe limites a abordagem da autonomia e da emancipação ao ter como objetivo propagar uma visão ultrapassada de mundo.
O tema da disciplina é um dos elementos fundantes da concepção de educação de Antonio Gramsci, tendo como chave teórica “o trabalho como princípio educativo".
A crítica tanto ao espontaneismo quanto ao autoritarismo estão presentes nesta concepção.
Entendendo o homem como expressão objetiva de toda uma relação histórica, Gramsci considera que o educando não pode ser dissociado das relações históricas concretas. Por esse motivo, propõe a centralidade da categoria “trabalho como principio educativo” e sua base material como praxis instauradora da escola unitária em oposição à escola única tradicional.
Na discussão sobre a questão da cultura Gramsci retoma o problema escolar. A escola classista afasta os trabalhadores da possibilidade de acesso a uma educação mais ampla. E a escola profissional se torna a única opção. A escola profissional termina por ser “uma incubadora de monstros aridamente instruídos para um ofício, sem ideias gerais, sem cultura geral, sem alma, mas apenas um olho infalível e mão firme”1.
Para Gramsci, a questão da cultura é central na formação do “homem novo". Por isso é contra a ideia de que é necessário primeiro obter a liberdade politica para depois obter a liberdade cultural. Para ele, a própria luta cultural é liberdade.
“A fase mais inteligente da luta contra o despotismo dos intelectuais de carreira e da competência por direito divino é constituída pela ação para intensificar a cultura, para aprofundar a consciência. E essa obra não pode ser postergada para amanhã quando formos politicamente livres. Ela própria é liberdade, ela mesma é estimulo à ação e condição de ação“2.
É com esta orientação que Gramsci considera que a educação mais do que um direito, é um dever: o de preparar-se “para assumir a gestão social”3.
Gramsci diz que para que isso ocorra é necessário que a verdade ganhe as massas. É necessário “que ao menos um certo número de trabalhadores saia do indistinto genérico dos ruminadores de livretos e consolide o seu espírito em uma visão crítica superior da história e do mundo em que vive e luta".
E essa verdade não é fácil e simples de ser atingida.
“Deve-se convencer a muita gente que o estudo é também um trabalho, e muito fatigante, com um tirocínio particular próprio(...) é um hábito adquirido com esforço”4.
Gramsci discorda da ideia de que devemos tornar “fácil” o conhecimento. Deste modo, um conceito difícil de ser compreendido não pode ser tornado fácil sem que se torne vulgar e empobrecido.
Por esse motivo é que Gramsci insiste na formação de uma consciência crítica, numa práxis educativa emancipatória para que de forma gradativa o sujeito atinja a maturidade intelectual. Nas Cartas que escrevia aos filhos desde o cárcere fica evidente essa preocupação.
A concepção de Gramsci sobre educação entendida como o processo de desenvolvimento do homem promovido a partir das condições materiais e pela ação de domínio e transformação dessas condições na construção de sua autonomia e emancipação coloca a centralidade da disciplina neste processo. A disciplina surge como mediadora das ações humanas para que estas se transformem, por meio da constância e do empenho em algo concreto e objetivo que possibilite a “passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade".
Para que esta “passagem” ocorra é preciso a existência de muita disciplina porque aprender e apreender a verdade é uma tarefa difícil que exige persistência e método.
Essa disciplina a que se refere Gramsci e cuja centralidade é fundamental na construção da emancipação e da autonomia, dentro de uma proposta de educação integral, não é a mesma que a escola tradicional, a escola profissionalizante e a escola cívico-militar tem em seu horizonte pedagógico e ideológico.
A emancipação não é construída com o acúmulo de conhecimento desistoricizado e com o mero cumprimento de regras e preceitos sem sentido para o educando. A emancipação está organicamente articulada ao domínio do método para o entendimento da realidade histórica.
Nas Cartas aos filhos sempre se referia as questões da disciplina e do método na construção da autonomia e da emancipação para a inserção do homem como sujeito histórico do seu tempo.
A educação neste sentido propicia ao ser humano o domínio da natureza, de si mesmo e do desenvolvimento intelectual que o torna capaz de dominar a realidade e de transformá-la.
A preocupação é com a formação integral do homem compreendendo tanto as habilidades intelectuais quanto as físico-motoras tendo o trabalho como mediador e princípio educativo na articulação permanente entre teoria e prática.
Já a proposta contida na “militarização das escolas públicas” tem como princípio a submissão dos alunos a uma disciplina rígida que possui um fim em si mesma e que visa a homogeneização dos indivíduos, submetendo-os a padrões estéticos, comportamentais e de ação que visam uma formação reduzida a indivíduos obedientes e alienados. O objetivo dessa homogeneização seria, entre outras coisas, apagar as diferenças de classe.
Na reflexão de Roberto Romano “a inclusão de militares no sistema educacional alimenta a ideia de que há um inimigo a ser combatido nas escolas. Nas duas ditaduras do século 20, você teve a presença muito forte do ideal militar de disciplina. O que nós estamos assistindo é um retorno do que há de pior na tradição política brasileira que é a recusa da vida civil, com suas liberdades, autonomia. Me parece que as consequências disso são tremendas, porque você tem, pela primeira vez, um plano ordenado de transformar as escolas em quartéis”5.
O que é significativo reter é que se a educação dos jovens não tiver a História como ponto de partida e de chegada para a construção do conhecimento e da verdade, estes ficarão dependentes do senso comum, de fantasias, de mitos e de regras sem sentido. É preciso voltar-se para para a compreensão das condições e circunstâncias materiais em que se está inserido para poder nelas agir de modo crítico e consciente tendo em vista sua superação e
transformação.
A escola cívico-militar impõe limites a abordagem da autonomia e da emancipação ao ter como objetivo propagar uma visão ultrapassada de mundo.
O mais grave nisso tudo é que essas iniciativas não se constituem em medidas aleatórias de política para a educação. Não se configuram em “medidas equivocadas" que o governo está praticando em relação à educação. Na verdade são “ações assertivas e planejadas " que visam sustentar um projeto de autoritarismo conservador posto em prática pelo governo golpista com o apoio oportunista dos empresários da educação e dos organismos multilaterais alinhados com um projeto de subserviência do povo a uma proposta excludente de educação.
Como já dizia nosso querido e brilhante antropólogo e educador Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto".
1 “Uomini o machine?”, A, 24-12-1916, SG, p. 58. Apud Dias, Edmundo Fernandes. “Cultura, política e cidadania na produção gramsciana de 1914 a 1918”. Cadernos do CEDES, São Paulo/Cortez Editora/Autores Associados, número 3, pp. 47.
2 “Prima liberi", GP, 31-8-1918, SG,P. 301. Apud DIAS, Edmundo Fernandes, op. cit, pp. 50.
3 “La colaborazione col senso morale", GP, 8-6-1918, SG, p. 256. Apud DIAS, Edmundo Fernandes, op. cit, pp.50.
4 GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, pp. 139.
5 ROMANO, Roberto. Escola cívico-militar é debatida em seminário. Correio Popular, Campinas SP, publicado em 04/12/2019.