"Sabemos que os sinos não dobram em 2020, pelos desvalidos atingidos pela extraordinária forma de 'sermos humanos' nas sociedades capitalistas, nas quais vive a maioria da humanidade que habita o planeta terra, com sua forma redonda, que dispôs de recursos naturais abundantes, os quais pareciam infinitos, no entanto, estão sendo cada vez mais rapidamente esgotados como efeito da insensatez dos governantes que governam os países, com um único plano concebido: preservar as condições para o aumento exponencial da riqueza concentrada em mãos de 1% dos habitantes da terra, cujo poder econômico resulta da apropriação indébita da produção coletiva."
Setenta e cinco anos após a última guerra mundial, em 2020, o registro de um milhão de mortos vitimados pela covid-19, no fim do mês de setembro, escancara um cenário de dor e de desamparo da espécie humana. Avalia-se que esse total ultrapassou o número de mortos das duas grandes guerras do século XX1 e se lamenta, profundamente, a destruição da natureza e das vidas humanas, de modo tão devastador.
John Donne, escritor inglês, cuja obra Meditações inspirou o escritor americano Ernst Hemingway a escrever, em 1940, Por quem os sinos dobram, destacava em seus poemas o absurdo das guerras, afirmando: "Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade". Hemingway, por sua vez, mostra ao longo do seu livro a estranha condição humana, em que os seres humanos são levados a se destruírem, sem que possa se justificar esses atos tão contraditórios de estranhamento em relação ao outro.
Em meio ao quadro da pandemia, de proporções gigantescas, que atingiu em todos os países, pessoas de todas as idades, de todos os gêneros, de todas as etnias, e de todas as classes sociais, fiquei relembrando o título desse livro, que depois foi também inspiração para um filme (1943), que muitos dos leitores dessa coluna devem ter assistido. Fiquei refletindo sobre as causas das guerras, as causas das mortes produzidas pela ação de um vírus letal, chegando sempre à mesma conclusão do escritor inglês: estamos todos perdendo parte significativa da humanidade e, portanto, parte de nossa história de vida como seres humanos.
Olhando em nossa volta, não estão apenas as imagens dos seres sepultados em covas rasas, sem sequer terem tido a possibilidade de serem reconhecidos e pranteados pelas suas famílias. Foram milhares de pessoas, no Brasil, pobres, em sua maioria, constituindo a população negra, que, predominantemente, foram enterradas como indigentes, como ocorre em tempos “normais”, quando desaparecem os corpos dos habitantes das periferias, assassinados em nome da “ordem”, dos hospitais infectados que atendem somente aos miseráveis, dos “abrigos” em que vivem os idosos empobrecidos e desabrigados. Parece que a “normalidade” se expandiu em tempos de pandemia, de tal modo, a se tornar quase natural prever que alcançaremos, talvez, até o final do ano, a marca de mais de 180.000 mortos no país.
Sabemos que os sinos não dobram em 2020, pelos desvalidos atingidos pela extraordinária forma de “sermos humanos” nas sociedades capitalistas, nas quais vive a maioria da humanidade que habita o planeta terra, com sua forma redonda, que dispôs de recursos naturais abundantes, os quais pareciam infinitos, no entanto, estão sendo cada vez mais rapidamente esgotados como efeito da insensatez dos governantes que governam os países, com um único plano concebido: preservar as condições para o aumento exponencial da riqueza concentrada em mãos de 1% dos habitantes da terra, cujo poder econômico resulta da apropriação indébita da produção coletiva.
Essa “ordem natural” não se abalou durante a pandemia e nem se avizinham sinais que nos permitam acreditar em mudanças nos rumos da história da civilização humana no século XXI. Não se coloca mais o dilema socialismo ou barbárie, pois ela está plenamente instalada em todos os países, em que a miséria se agrava com a doença e a fome, com o desemprego e a insegurança, com o desamparo e a loucura expressa nas faces dos que estão nas ruas, sem teto, sem cuidados, abandonados como seres invisíveis, quando não são assassinados para se garantir espaços públicos mais “higienizados”.
Onde foi que se perdeu o rumo da história das mudanças realizadas nos séculos passados, em que se revolucionaram os regimes políticos, derrubando os reis e rainhas tiranos, pela ação dos burgueses, concretizando um projeto revolucionário de emancipação dos seres humanos? Por meio de que processos históricos, reeditou-se a tendência de escravizar seres humanos e transformá-los em mercadoria? Teria apenas mudado a direção dos ventos, nos tornando reféns da incerteza e da insensatez desmedida dos poderosos em todos os cantos da terra?
Essas indagações não se esclarecem sem um resgate da história concreta das sociedades capitalistas e sem que possamos assumir um outro tipo de questionamento: de que lado da história optamos viver: do lado da luta pela emancipação humana ou do lado da conservação da estrutura social injusta e desigual, que reproduz as condições de dominação da grande maioria dos seres humanos, por um restrito grupo de outros seres humanos cuja humanidade foi se perdendo ao longo da história da civilização?
Seria essa apenas uma questão de opção por um ou outro lado da história, ou seria essa apenas uma forma simplista de reduzir a complexidade da história dialética produzida pelos seres humanos, essencialmente, contraditórios? Seria possível superar essa constituição paradoxal e realizar um projeto de humanização integral dos seres humanos, a fim de que se produza uma revolução política, econômica, cultural, educacional e social, sem precedentes na história?
Talvez seja possível de se realizar num continuum de ações a serem concebidas e materializadas, simultaneamente, por trabalhadores de todas as categorias e educadores-militantes, em particular, por ser a mais numerosa, organizada e unificada categoria de trabalhadores intelectuais, pelo fato de ser desvalorizada e explorada, em níveis profundos na sua existência material e espiritual, um processo de revolução continuada.
Essa subversão da “ordem”, ou seja, a não aceitação da realidade existente, pode se iniciar em micro espaços e se espraiar em amplos contingentes de estudantes, professores, funcionários administrativos e pais de estudantes, para imprimir no cotidiano das escolas outra perspectiva de educação, que seja integral, que leve em conta a condição física, psíquica e emocional, buscando saídas coletivas para os dilemas que se agravam na segunda década do século XX, ao ponto de colocar em situação de risco muito mais vidas humanas, de todas as idades.
A primeira onda de reação contrária às ordens arbitrárias do Estado capitalista governado no Brasil, por pessoas despreparadas e que não desejam pensar um projeto de sociedade verdadeiramente democrática, porém com elevada qualificação para subtrair os recursos públicos de todas as áreas, priorizando dar suporte aos banqueiros, latifundiários incendiários, donos das mídias em todas as suas modalidades de produção de falsas interpretações da realidade, mercadores da fé, falsos profetas do século XXI, e as corporações do capital estrangeiro, será dizer, definitivamente, não ao retorno às escolas no ano de 2020.
Se voltarem a funcionar as escolas públicas de todos os estados e municípios, expondo ao risco de contágio coletivo ampliado, os professores, estudantes, além de suas famílias e vizinhos, terão que ser processados os governadores e prefeitos que estão pressionando a categoria de professores, sob ameaças de demissão inclusive, pela ação planejada de empurrar para o precipício da covid-19 milhares de pessoas de todas as faixas etárias. Aos governantes tiranos para quem não vale a vida dos outros, digamos não voltaremos. A educação não pode ser refém do Estado capitalista injusto, responsável pelas medidas da necropolítica que agravaram o quadro da pandemia no Brasil. Não esperemos que os sinos dobrem por nós. Precisamos tirar a educação da tutela do Estado capitalista e educar as novas gerações, para uma revolução continuada até que se construam as bases materiais e espirituais em direção à superação do capitalismo.
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1 Recebi uma observação de uma professora de História, dizendo que o número das duas guerras ultrapassou 10 milhões de mortos. Eu havia lido numa reportagem recente, que era em torno de mais de um milhão apenas. Peço que me desculpem por esse equívoco.