ISEB: a universidade paralela

"O ISEB irá submergir, juntamente com o movimento estudantil e todas as outras manifestações do populismo radicalizado dos primeiros anos sessenta, com o golpe de 1964. Mas, como “universidade paralela”, o seu momento áureo foi, de fato, a segunda fase, a do desenvolvimentismo."

O ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros – foi criado pelo decreto n. 57.608, de 14 de julho de 1955, sendo presidente da República João Café Filho, vice-presidente que assumira a presidência devido ao suicídio de Getúlio Vargas no ano anterior. Mas ainda no período de Vargas surgiu o embrião do ISEB, que foi o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política - IBESP.

O principal articulador do ISEB foi o cientista político Hélio Jaguaribe, que já presidira o IBESP. O grupo isebiano contava com intelectuais  como Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes de Almeida, Alberto Guerreiro Ramos, Nélson Werneck Sodré e Roland Corbisier. Nascido no crepúsculo do populismo de Vargas, o ISEB irá refulgir no período do nacionalismo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek.  

As aproximações do modelo isebiano com o da universidade afloram à primeira observação. No decreto que o cria em 1955, no seu Regulamento Geral, o ISEB é definido como um órgão do Ministério da Educação e Cultura e, como tal, subordinado ao respectivo ministro. No entanto, como acontece com a universidade, o ISEB é dotado, desde seu ato criativo, de “autonomia administrativa e plena liberdade de pesquisa, de opinião e de cátedra”. Foi pesquisando esse aspecto que pude escrever, em dissertação de mestrado apresentada e defendida na UNICAMP: “Embora criado por decreto e funcionalmente vinculado ao Ministério da Educação, o ISEB só pode ser caracterizado pela sua feição estatal mediante formalismo exagerado. De fato, na sua atuação concreta, o ISEB aproximou-se da sociedade civil e, em certa medida, refletiu suas divisões, inquietações e esperanças”. E pouco adiante: “Com ser um aparelho do Estado, o ISEB não se tipifica pelo lado da burocracia estatal”.

O primeiro diretor executivo (algo como um “reitor”) do ISEB foi Roland Corbisier, intelectual de vasta produção, cuja importância no cenário do pensamento brasileiro procurei destacar em minha tese de doutoramento na UNICAMP.  

Na mais tipicamente universitária feição de sua organização, o ISEB contava, na sua parte docente, com cinco departamentos, aos quais cabiam a organização dos cursos e outras atividades culturais, como os ciclos, as publicações e as palestras. Respondiam pelos departamentos, na altura de sua criação: Filosofia: Álvaro Vieira Pinto; História: Cândido Mendes; Sociologia: Alberto Guerreiro Ramos; Ciência Política: Hélio Jaguaribe; e Economia: Evaldo Correa Lima.

Como uma universidade, o ISEB dava cursos regulares, com um ano de duração, os quais exigiam de seus frequentadores dedicação em tempo integral. Para isso, muitos desses alunos recebiam bolsas de estudos. Fora os cursos regulares, o ISEB organizava e ministrava cursos especiais, de menor duração, como o que tive oportunidade de frequentar em 1960, em Campinas, ministrado por Roland Corbisier.

Com agudo senso histórico, Caio Navarro de Toledo conseguiu entrever três momentos na relativamente curta existência do ISEB, que não passou de 9 anos: Ecletismo pré-desenvolvimentista (1955); Nacionalismo-desenvolvimentista (1956-1961); e Reformismo (1962-1964). Em todas essas fases o caráter “universitário” do ISEB reponta com nitidez, não obstante as diferenças acentuadas que se pode vislumbrar de uma para outra. Na fase do ecletismo pré-desenvolvimentista a universidade isebiana ressente-se da mesma ambiguidade que marca a universidade de pleno direito, resultante da convivência no seio da instituição de distintos tempos ideológicos. Enquanto Roland Corbisier, Nélson Werneck Sodré e Guerreiro Ramos antecipam o discurso nacionalista da fase seguinte, outros, como Alexandre Kafka e Roberto Campos, prenunciam a pregação tecnocrática que se tornará oficial no país com a ditadura após o golpe de 1964. No extremo oposto, Gilberto Freyre e Pedro Calmon, por exemplo, representam o tempo ideológico do tradicionalismo. Na fase seguinte o ISEB se tornará o pregoeiro do tempo presente, tempo da expansão das forças produtivas, da euforia burguesa, do nacionalismo como ideologia capaz de mobilizar os setores populares da sociedade e do desenvolvimentismo como bandeira do empresariado. O ISEB do terceiro período – do qual já se haviam desligado alguns de seus vultos históricos como Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos – engaja-se de corpo e alma, principalmente de alma, na luta pelas reformas de base. Dos “isebianos de primeira hora” a essa altura não restam senão Álvaro Vieira Pinto e Nélson Werneck Sodré. O ISEB irá submergir, juntamente com o movimento estudantil e todas as outras manifestações do populismo radicalizado dos primeiros anos sessenta, com o golpe de 1964. Mas, como “universidade paralela”, o seu momento áureo foi, de fato, a segunda fase, a do desenvolvimentismo.

O que caracteriza uma universidade? Dir-se-ia, hoje, que ela se caracteriza, não pela sua estrutura formal, mas pela função que exerce em relação à sociedade, conforme notou Antonio Muniz de Rezende em 1984. Seja qual for essa função: de reprodução social, na linha de Bourdieu-Passeron, de legitimação profissional, conforme a lógica legalista, de instância crítica, de consagração cultural, de aparelho ideológico, de departamento científico da sociedade econômica...

O ISEB, como universidade paralela, dedicou-se ao saber dominante em suas modalidades superiores. A universidade nominal também. Mas de maneira altamente contraditória. A USP dos anos 50 conheceu um momento verdadeiramente pinacular em sua vasta produção científica, mas viveu o paradoxo de não ser o centro de difusão do saber dominante, cedendo esse papel a uma instituição como o ISEB. É que o senso comum só via da universidade sua face arcaica, um lugar inadequado às exigências do progresso. De outro lado, o ISEB, aparato cultural das forças produtivas em expansão, era um lugar de progresso, era o presente e o futuro próximo. Era uma universidade, mas “paralela”: não podia funcionar como instância de legitimação-consagração.

Em compensação a essa limitação institucional, o ISEB foi extremamente dinâmico como núcleo de difusão ideológica. E disso tinham plena consciência os próprios isebianos. Disse seu diretor Roland Corbisier: “Pensando ‘em situação’, estamos convocados a elaborar a ideologia que nos permita decifrar o Brasil (...). País que despertou e não mais pode prescindir de uma ideologia em que se possa encontrar e reconhecer”.  O ministro da Educação à época, Clóvis Salgado, elogiava o trabalho do órgão: “O ISEB, como instrumento teórico deste magnífico movimento, que é o surto de progresso do Brasil atual, está prestando, em seu setor, uma contribuição de primeira ordem”. O ISEB representou um momento altamente imaginativo e criador, não só em termos de produção, mas até mesmo no próprio fato de existir como “universidade paralela”. Foi a universidade paralela dos anos 50 do século XX. Por isso foi tão útil.