Relatório da Província de Mato Grosso - Joaquim Gaudie Ley 1867 e 1868

Relatório do Inspetor de Instrução Pública da Província de Mato Grosso - Joaquim Gaudie Ley ano de 1867 e 1868

 

 

 

Introdução

André Paulo Castanha[1]

 

Informações sobre o Autor

O Inspetor Joaquim Gaudie Ley era comerciante e conseguiu conciliar as atividades comerciais com inúmeros outras de cunho público e social na Província de Mato Grosso. Foi deputado provincial, provedor da Santa Casa de Misericórdia, Juiz de direito e municipal, chefe de polícia, membro da Caixa Econômica e Monte Socorro, secretário da Companhia Empresário de Theatro, vice-presidente da Província e Inspetor Geral de Instrução Pública por um período de 22 anos (1849-1871). Recebeu o título de Comendador e foi condecorado pelo governo imperial com o oficialato da Ordem da Rosa. José de Mesquita conta que Gaudie Ley recusou o título de Barão oferecido pelo Imperador. Para usufruir o referido título, teria que fazer uma doação muito generosa em dinheiro a uma instituição de caridade do Rio de Janeiro. Declarou que aceitaria o título se esta doação pudesse ser feita para a Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá. Como o Imperador não aceitou a sua proposta, ele renunciou ao baronato. Destacou-se na tarefa de organizar a instrução pública na província propondo várias medidas visando colocar a instrução a serviço do desenvolvimento moral dos professores e alunos. Várias das suas idéias acabaram virando lei no regulamento de 1873.

Os inspetores faziam a inspeção nas escolas públicas e particulares, fiscalizavam o trabalho dos professores. Geralmente no inicio de cada ano elaboravam um relatório sobre a situação da instrução publica encaminhando ao presidente da Província, o qual colhia as informações e apresentava aos deputados provinciais no inicio do trabalho legislativo.

Não há dúvidas da importância dos relatórios dos inspetores de instrução pública como fontes primárias essenciais para compreender o processo de organização da instrução pública, na Província, enquanto política do Estado. Os relatórios dos inspetores serviam de base para os presidentes elaborarem seus relatórios anuais apresentados à Assembléia Provincial. Em muitos casos, os presidentes apenas reproduziam o texto dos inspetores. Os historiadores da educação que consultaram apenas os relatórios dos presidentes deram crédito a estes por afirmações que, muitas vezes, não eram deles, mas sim dos inspetores. Por isso trabalhar com os relatórios é uma ótima opção para a compreensão da instrução pública no século XIX.

Os relatórios descrevem diversos aspectos da instrução pública, uns de maneira mais aprofundada, outros mais superficial. Destacam-se os seguintes temas: inspetores paroquias, criação de escolas, mobília, funcionamento das escolas, matrículas, freqüência, exames, alunos carentes, premiação dos melhores alunos, métodos de ensino, disciplina nas escolas, formação dos professores, concursos, salário, condições de trabalho, currículos, inspeções nas escolas, orçamento, ensino secundário, particular, escolas femininas. Enfim, são documentos completos e amplos, que oferecem muitas possibilidades de estudos.

O texto que apresento a seguir foi transcrito dos originais, ainda na forma manuscrita. Nele foram respeitados a forma de organização das idéias e os sinais de pontuação, atualizando apenas a grafia. A seguir você poderá consultar na íntegra uma fonte fundamental sobre a educação na Província de Mato Grosso.

 

 

 

Relatório do Inspetor Geral dos Estudos Joaquim Gaudie Ley - elaborado em 31 de junho de 1869, referente aos anos de 1867 e 1868. APEMT, ano de 1869, Lata B - Documentos Avulsos.

       

 

Ilmo. Exmo. Senhor.

 

Cumprindo o preceito que me impõe o parágrafo 6º do artigo 37 do Regulamento de 30 de setembro de 1854, e o que V.Exa. determinou-me em ofício de 10 do mês próximo passado, tenho a honra de oferecer a alta consideração de V.Exa. o presente relatório sobre o estado da instrução pública e particular desta Província com a indicação das ocorrências que tiveram lugar nestes dois últimos anos e das providências que parecem-me necessárias para o melhoramento deste ramo do serviço público, imerecidamente confiado aos meus cuidados.

 

Inspetoria Geral e Paroquiais

A devastadora epidemia das bexigas que infelizmente assolou esta província fez notavelmente sentir seus terríveis efeitos no quadro dos Inspetores dos Estudos, privando-o de bons servidores, quais o Reverendo Cônego Joaquim Antônio da Silva Rondon, substituto do Inspetor Geral, o vigário Miguel Dias de Oliveira, Inspetor da paróquia de Santo Antônio, vigário Sebastião da Silva Fruin, da Guia, vigário Antônio Pedro de Figueiredo, de Poconé, e os Tenentes Coronéis José Ildefonso de Figueiredo e João Nunes Bueno do Prado, substitutos nestas duas últimas freguesias.

Além destas perdas, pela epidemia, outras mais infelizmente ocorreram e foram as do Tenente Salvador José da Cunha Inspetor de Vila Maria, do Major Joaquim Antônio de Vasconcelos Pinto, de Mato Grosso, do Tenente Coronel Caetano da Silva Albuquerque e do Capitão Luiz de Fonseca Moraes, de Miranda, e Joaquim Pires da Silva e Francisco da Costa Leite, de Corumbá. As vagas deixadas por tais falecimentos foram já preenchidas nos lugares em que o serviço a exige, e brevemente apresentarei uma proposta para o preenchimento dos restantes. O quadro n.º 1 mostra o pessoal destes empregos.

A escrituração desta Inspetoria Geral continua em bom estado e em dia devido isto ao zelo do seu único empregado cidadão João Bueno de Sampaio.

 

Professores

Bem sensíveis foram também as perdas que a mesma epidemia causou na classe dos professores privando-nos dos da cadeira do 2º grau desta Capital Manuel Ribeiro dos Santos Tocantins, da do 1º grau de Poconé Antônio Nunes de Figueiredo e seu substituto Valério José Ferraz e da Paroquia da Chapada, Lourenço José de Oliveira.

A exceção da vaga deixada pelo 1º destes professores, cuja cadeira foi transferida para o Seminário Episcopal conforme dispôs a lei de 16 de junho do ano passado próximo, as demais já foram preenchidas, inclusive a que se deu em conseqüência do falecimento em outubro último de José Gomes Pedroso, professor de Vila Maria.

Foram nomeados:

Fidelis Bernardo de Oliveira em 22 de julho do ano próximo passado para a cadeira da Chapada, provida na forma do art. 14 do Regulamento. João Augusto de Araújo em 21 de setembro, para a Guia, na forma do art. 7º ou mediante exame formal. Teotonio Calisto de Moraes Zatta em 6 de fevereiro do corrente ano, para a de Santana do Parnayba, na forma do art. 14. Manuel Felicíssimo Pereira em 3 de março próximo passado para a de Poconé na forma também do art. 14º.

Pe. Manoel Benedito da Costa Maricá e Francisco José dos Santos, para adjuntos das duas escolas de meninos desta Capital, cuja avultada freqüência tornou esta providência urgente como representei em ofício a Exma. Presidência.

Foram demitidos a requerimentos seus:

Em outubro próximo passado da cadeira de São Gonçalo João Batista da Silva Albuquerque; em maio último o da Chapada Fideliz Bernardo de Oliveira.

Voltou ao exercício em primeiro de outubro do ano passado o professor de Miranda Jacinto Antônio da Assunção, depois de uma interrupção de mais de 3 anos, motivado pela invasão paraguaia.

Mui pouco são os professores que tem as necessárias habilitações, devido isto a grande falta de pessoal e a mesquinhez dos vencimentos, mesquinhez agravada de dia a dia pela corrente alta dos preços dos víveres. O princípio que sigo de ser útil ao ensino primário, ainda mesmo dado imperfeitamente, explica a maior parte de tais nomeações.

Cumpro, entretanto um dever, declarando que nada me tem constado contra a moralidade dos mesmos.

O quadro n.º 2 mostra os nomes de todos os professores, as datas de suas nomeações, os seus vencimentos e o n.º de seus alunos.

 

Cadeiras e suas freqüências

Das 20 cadeiras criadas em toda a Província, quinze somente tiveram exercício no ano passado, sendo 10 no ano todo, e 5 em parte dele.

Todas são de instrução primária do 1º grau, sendo 3 para o sexo feminino, estabelecidas duas nesta Capital, e uma em Sant’Ana do Parnayba.

Estiveram, portanto 5 vagas, sendo as de Corumbá e de Albuquerque desde 1865, em conseqüência da invasão paraguaia, e a de Poconé e Sant’Ana do Parnayba pela falta de opositores.

A freqüência das 15 cadeiras durante o ano próximo passado, tomada pelas relações semestrais, foi, termo médio de 594 alunos de ambos os sexos, havendo uma diferença de 60 alunos, comparando-se com o quadro da freqüência de 1866. Esta diferença resulta sem dúvida alguma das mortes causadas pela epidemia, ainda não ressarcida, apesar de ter-se decorrido perto de dois anos.

 

Casas e Mobílias

A exceção dos dois professores da freguesia da Sé, todos os demais pagam o aluguel de casas a sua custa, o que é na verdade oneroso para os que moram em lugares onde as casas são de alto preço, além do que, concorre isto para a má acomodação das escolas, não sendo, pois justo obrigá-los a pagarem grandes quantias que absorveriam os seus vencimentos reconhecidamente insuficiente. As casas da rua do campo, compradas para a escola do 2º grau, acham-se sob a administração da contadoria Provincial, que as aluga a particulares. As duas outras, ocupadas pelas escolas de meninos acham-se em sofrível estado de conservação, mas dependentes de algum asseio, para o que é necessário que se consigne alguma quantia, bem como para compra de mobília de algumas escolas que as não tem, e reforma de outras.

 

Métodos de Ensino e Compêndios

Continuam as escolas regidas pelo método estabelecido pelo regulamento de 18 de agosto de 1855, por ora o possível, à vista da falta de habilitação da parte de muitos professores, e da de compêndios, tão difíceis entre nós.

Aproveito a ocasião para repetir as requisições que há muito tenho feito de meios para aquisição de livros próprios para este fim, assim como para o de prêmios, visto ter-se há muito esgotado a coleção de livros vindo da corte em 1863.

 

 Exames

Em conseqüência da epidemia não funcionaram as escolas de agosto a novembro de 1867, e isto deu lugar a que somente em Vila Maria houvessem exames, sendo a eles sujeitos dois alunos, dos quais um somente foi aprovado.

No fim do ano próximo passado, se fizeram nas 3 escolas da freguesia da Sé, nas das Brotas, Livramento, Rosário, Diamantino, sendo aprovados 25 alunos; 21 plena e 4 simplesmente, cujos nomes constam do quadro n.º 3.

No dia 18 de dezembro, no Palácio do governo distribuíram-se, com as solenidades de costume, os prêmios conferidos aos alunos das escolas da Capital.

 

Escolas Particulares

O quadro n.º 4 mostra quantas são as escolas particulares de primeiras letras que, conforme informação que pude obter, funcionaram no ano próximo passado, assim mais os lugares, os nomes dos seus professores e o n.º dos seus discípulos. Deles vê-se que foram todos freqüentados por apenas 146 alunos, sendo 45 do sexo feminino. Este n.º acha-se presentemente muito reduzido, em conseqüência de terem-se fechado os desta capital para meninos, cujo professor passou a reger a escola de 2º grau, transferida para o Seminário; a de Vila Maria, cujo professor foi provido na respectiva cadeira pública e o de Sant’Ana do Parnayba, cujo professor retirou-se no princípio do corrente ano para a província de Minas.

É muito digno de animação e proteção a professora particular D. Bertholina Carolina de Arruda Schultz pela constância com que se dedica ao magistério, aproveitando isto a muitas meninas pobres; e se os professores públicos das freguesias de fora tem direito a uma gratificação por cada aluno que ensinarem, justo será que de semelhante favor aproveite uma senhora que presta igual serviço e é unicamente  pobre.

 

Providências

Julgo indispensável que em quanto continuar a cadeira de 2º grau incorporada ao seminário se crie uma outra do 1º grau elevando-se uma das existentes a categoria de 2º grau, visto que o n.º dos alunos já excede ao que comportam as casas.

Que se aumentem os ordenados elevando o do professor de 2º grau a 1:200$000, ao do 1º grau da capital a 960$000, e aos demais a 600$000, e que quando isso não possa ter lugar logo, ao menos se dêem gratificações à títulos de aluguéis de casas, principalmente aos das freguesias ode eles são caros, como São Gonçalo, Guia e Vila Maria.

Que se mandem vir da Corte livros para compêndios, e outros destinados aos prêmios.

Que se estenda aos professores particulares a favor das gratificações de 10$000 por ano pelo ensino de meninas, isto é, a aqueles que a juízo do governo se fizerem dignos.

Que se eleve a quota de 300$000 destinada para suprimento de utensílios para os alunos pobres, cujo n.º sendo como se vê do respectivo quadro de 271, fica claro, sem mais que é insuficiente.

 

Conclusão

Eis Exmo. Sr. Tudo quanto posso informar a V.Exa. relativamente ao estado da instrução pública e particular d Província.

Espero que V.Exa. usando da sua costumada indulgência, releve as lacunas e outras faltas que minha insuficiência não pode evitar.

Deus Guarde a V.Exa. Inspetoria Geral dos Estudos em Cuiabá, 31 de julho de 1869.

Ilmo. Exmo. Sr. General Barão de Melgaço.

Digmo. Presidente da Província.

 

 

                                                               Joaquim Gaudie Ley

                                                         Inspetor Geral dos Estudos.

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Professor no Colegiado de Pedagogia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, campus de Cascavel. Membro do Grupo de Pesquisa HISTEDOPR (GT local do HISTEDBR), onde desenvolve pesquisa na linha: História, Sociedade e Educação. Historiador e Mestre em Educação pela UFMT. Atualmente é doutorando em Educação pela UFSCAR na área de Fundamentos da Educação, onde desenvolve pesquisa sobre a instrução elementar no Brasil do século XIX.

 

Período Histórico: