Carta de Porto Alegre - III Congresso Educação

 

Carta de Porto Alegre

III Congresso Nacional de Educação

O cenário brasileiro deste fim de século XX se caracteriza por novos e numerosos exércitos de excluídos que disputam palmo a palmo os espaços públicos urbanos em atividades de trabalho informal vexatórias; enorme contingente, ainda humano, de trabalhadores rurais sem terra ocupam propriedades improdutivas a exigir uma reforma agrária prometida, mas jamais cogitada; enquanto os noticiários retratam as redes comprovadas e suspeitas do narcotráfico, do roubo e da corrupção ancoradas nos Poderes; o futuro de nossa sociedade revela-se na face de meninos-trabalhadores no sisal, nas carvoarias, no garimpo da cassiterita, entre outros, expondo para quem queira ver o seqüestro da infância... Meninas e jovens adolescentes são prostituídas, cada vez são mais freqüentes as rebeliões na FEBEM entre os jovens sem perspectivas e um índio desenraizado é queimado em pleno Planalto Central. Por negligência do Poder Público alguns indigentes chegaram a consumir carne humana de lixo hospitalar em rompante de antropofagia compulsória e não como metáfora cultural. Massacres se alternam no tempo e no espaço, entre os quais Eldorado do Carajás e Carandiru são apenas meros exemplos. Impunidade. Descaso e conivência das autoridades constituídas, pretensamente representativas de toda a sociedade.

O contexto social, econômico e político brasileiro é o do neoliberalismo, que tenta, via globalização pretensamente inexorável, imprimir marca indelével nas políticas públicas, entre elas na de educação. Tais políticas são induzidas por organismos internacionais impostas como "acima de quaisquer suspeitas".

Na educação vigoram as determinações do Banco Mundial que, de fato, estabelecem tanto a estrutura como a função dos vários níveis – da Educação Infantil à Pós-Graduação. Quanto às implicações deste quadro, o governo central parece apenas reconhecer algumas mazelas educacionais – sobre as quais não se sente responsável –, citando-as em textos oficiais sem quaisquer relações de causa/efeito, como se "naturais" e dando seqüência e aprofundando a política dos organismos internacionais: desresponsabilização do Estado, privatização generalizada, restrição da democracia, flexibilização das relações do trabalho, privilégio da racionalidade técnica, exclusão social.

As entidades que integram o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública avaliaram a situação política decorrente do projeto contrário aos interesses da maioria da população brasileira, consolidado tanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/96) e legislação correlata, como na continuidade de políticas educacionais excludentes, implementadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e demais governos e partidos que lhe prestam apoio. Adiantaram-se ao governo, sistematizando sua utopia educacional por meio da construção de um Plano Nacional de Educação (PNE), um instrumento de intervenção política que garantisse a concretização do sonho coletivo de uma educação para a cidadania, reafirmando-a como direito de todos e dever do Estado.

O Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, ao longo de mais de dez anos, vem atuando na defesa intransigente da educação para todos, pública, gratuita, laica, em todos os níveis, caracterizada pela qualidade social. Organizado para atuar na Constituinte, esse Fórum foi responsável pelas principais conquistas que os setores sociais comprometidos com tal educação conseguiram inserir na Constituição Federal de 1988 (CF/88). Teve papel decisivo na construção do projeto de LDB (PL nº 1.258/88), o qual, embora representativo da sociedade brasileira, foi substituído por outro no Senado, este elaborado à revelia da sociedade e, finalmente, aprovado no Congresso Nacional – a LDB em vigor.

O I Congresso Nacional de Educação (I CONED, Belo Horizonte/MG, julho–agosto de 1996) colocou-se, entre outros objetivos, o de organizar a intervenção nos processos de elaboração e tramitação da LDB e sistematizou as diretrizes educacionais para a elaboração do nosso PNE, definindo um belo horizonte...

Com base nessas diretrizes e mobilizadas em resistência à promulgação da LDB, as entidades do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública promoveram, em todo o território nacional, inúmeras atividades que antecederam e garantiram a realização do II CONED (Belo Horizonte/MG, novembro de 1997) que culminou na consolidação do Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira (PNE – Proposta da Sociedade Brasileira), apontando para a sociedade o nosso belo horizonte...

A estratégia de construção democrática do PNE – Proposta da Sociedade Brasileira obrigou o governo a produzir de forma rápida e intempestiva o PNE – Proposta do Executivo ao Congresso Nacional (PNE/MEC), que revela as reais concepções e diretrizes de política educacional dos setores hegemônicos representados no/pelo governo FHC. Vale dizer: nossa estratégia forçou o governo a expor seu plano global de implementação de políticas educacionais excludentes, o que vinha fazendo sem testemunho formal, causando à sociedade a falsa impressão de ações focalizadas e desconexas.

O PNE – Proposta da Sociedade Brasileira se alicerça na defesa de princípios éticos voltados para a busca de igualdade e de justiça social. Suas propostas foram forjadas à luz de concepções de ser humano, de mundo, de sociedade, de democracia, de educação, de autonomia, de gestão participativa, de avaliação e de currículo antagônicas àquelas que os setores sociais hegemônicos utilizam para manter a política perversa e excludente que se subordina aos interesses do grande capital especulativo e que se expressa no PNE/MEC. Neste sentido, concebemos o PNE – Proposta da Sociedade Brasileira como um dos mais democráticos, representativos e importantes documentos da história da educação brasileira contemporânea.

Restava então deflagrar um processo que fortalecesse as raízes do nosso PNE na sociedade; divulgá-lo e defendê-lo consistia então o desafio seguinte. Demos passos importantes nesse sentido: transformamos o nosso PNE no PL n.º 4.155/98 no Congresso Nacional, ao qual foi apensado o PNE/MEC (PL n.º 4.173/98). Enfrentamos na Comissão de Educação da Câmara Federal, as poucas audiências públicas sobre o PNE às quais pudemos conseguir acesso e voz, em virtude do autoritarismo da base parlamentar governista que sistematicamente privilegiou a participação de expositores sintonizados com as propostas governamentais. De apensado ao PNE – Proposta da Sociedade Brasileira, o PNE/MEC tornou-se, pelo Substitutivo do relator, Deputado Nelson Marchezan (PSDB/RS), de fato no projeto de lei a ser eventualmente aprovado na Comissão de Educação da Câmara. Tal manobra consistiu na pretensa apropriação, mesmo que parcial, do ideário do nosso PNE, nas partes introdutórias, e na manutenção das metas do PNE/MEC, criando um "Plano Frankenstein". Repete-se, assim a história da elaboração e tramitação da LDB.

Outros passos mais amplos e importantes foram dados quando participamos da Marcha dos Sem Terra, em abril de 1998, da Marcha dos 100 mil em agosto de 1999, conclamada pelo Fórum Nacional por Terra, Trabalho e Cidadania, realizamos a Marcha Nacional em Defesa e Promoção da Educação Pública, em 6 de outubro de 1999, antecedida de manifestações contundentes em Estados e Municípios. Participamos do Dia Nacional de Paralisação e Protesto em Defesa da Democracia e do Emprego, em 10 de novembro de 1999. Além disso, nesse mesmo período, diferentes ações junto ao Ministério Público foram desencadeadas, impondo a alguns governantes irresponsáveis derrotas políticas importantes.

O III CONED realizou-se num porto alegre e seguro... "Reafirmando a Educação como direito de todos e dever do Estado". Seu principal objetivo é implementar o PNE – Proposta da Sociedade Brasileira.

Entendemos que nesse processo é importante a leitura, a análise e a atualização de seus dados e a definição de estratégias mais eficazes de sua implementação em diferentes níveis de profundidade e abrangência com base numa avaliação consistente da correlação de forças da luta que travamos no contexto político atual.

O III CONED teve um triplo caráter: informação e análise, constatação e denúncia, definição e articulação de políticas educacionais. O caráter de Informação e análise pressupõe o conhecimento de experiências, trabalhos e pesquisas de cunho inclusivo, desenvolvidos nos vários cantos do país; o de constatação e denúncia, avaliou as políticas educacionais excludentes em vigor; e o de definição e articulação apontou políticas e definiu um plano de lutas e uma agenda para garantir o direito de todos à educação. Ou seja, estamos propondo alternativas políticas concretas e estratégias para sua conquista e implementação, torna a educação uma prioridade nacional.

Realizamos o III CONED. Sua estruturação - conferências, painéis, mesas, pôsteres, plenárias temáticas e plenária final – refletiu o esforço de discutir e ampliar a possibilidade de concretizar as diretrizes, prioridades e metas do PNE – Proposta da Sociedade Brasileira, em todos os Municípios e Estados do país. Para que isto aconteça é necessário que estabeleçamos estratégias claras de ação, de curto, médio e longo prazos.

Entendemos que a partir daqui nosso desafio é dinamizar os Fóruns Estaduais e Municipais em Defesa da Escola Pública, rearticular os que já existiram e organizá-los onde eles ainda não existem. Tais organismos devem chamar para si a tarefa de elaborar Planos Municipais e Estaduais de Educação, à semelhança do PNE – Proposta da Sociedade Brasileira, em termos do processo democrático de sua construção e do seu conteúdo. Com isso, tendo a dimensão de estarmos construindo planos de Estado e não de governo, o III CONED espera dos futuros prefeitos, a serem eleitos em 2000 forte compromisso com a educação como prioridade.

É bom lembrar que, como instrumentos de planejamento, os Planos de Educação têm necessariamente uma dimensão política e outra técnica. Na dimensão técnica, devem prever avanços e alternativas de solução de déficits educacionais com base no levantamento de dados e na elaboração de um diagnóstico consistente das realidades municipais e estaduais. Na dimensão política, devem sistematizar ações a ser desencadeadas com base em diretrizes, prioridades e metas, democraticamente definidas, que ampliem seu potencial de organização prospectiva, de forma a ir concretizando o direito de todos à educação.

Tais procedimentos conferem maior legitimidade e compromisso àqueles que hoje defendem e promovem a educação pública de qualidade social. Nessa empreitada, o envolvimento e a participação da sociedade é imprescindível.

Porque, hoje, a exemplo de ontem, o governo FHC adota a mesma estratégia autoritária utilizada durante o processo de elaboração e tramitação da LDB, procurando a adesão de setores sociais ao seu excludente PNE.

O Rio Grande do Sul foi emblemático na escolha da sede do III CONED, pela acirrada e vitoriosa disputa de projetos políticos, que teve a decisiva participação dos trabalhadores e das trabalhadoras em educação, dos estudantes e de diversos segmentos da sociedade. A escolha também levou em conta o caráter de disputa, não só teórica e nos marcos institucionais, mas, sobretudo, nas práticas renovadoras que, esperamos, possam consolidar-se no âmbito dos Estados, dos Municípios e das instituições educacionais.

Também para nós, participantes do III CONED, estão em jogo dois projetos antagônicos de educação e de sociedade. É urgente a elaboração e a implementação de Planos Estaduais e Municipais de Educação com base no PNE – Proposta da Sociedade Brasileira.

Mas tenhamos clareza: o PNE – Proposta da Sociedade Brasileira e os demais Planos a serem elaborados nos Estados e Municípios constituem-se em alavancas e não no ápice da nossa luta. O ápice será o fim do projeto neoliberal, representado no momento por FHC, e a inflexão em favor de um projeto democrático e popular.

A realização do III CONED afirma a certeza de que é possível mudar a educação, mudar a sociedade, mudar o país.

Saímos deste porto alegre e seguro revitalizados para a continuidade de nossa luta, reafirmando a educação como um direito de todos(as) e um dever do Estado.

 

 

Porto Alegre/RS, 5 de dezembro de 1999.

Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública