Por que continuamos a financiar os que matam cidadãos brasileiros indefesos?

Estamos diante da violência que se imiscuiu na formação dos próprios policiais e militares por meio de um programa de deseducação instituído de norte a sul, leste a oeste e centro-oeste, pelos representantes das forças armadas que ocupam o poder no planalto central.

Inicio esse breve ensaio, reproduzindo uma poesia de Maria Aparecida D. Motta, a quem solicitei autorização para inclui-la nesta coluna, como uma síntese poética que evidencia a sua sensibilidade de apreender e traduzir a tragédia de Jacarezinho, de modo muito profundo, que nos toca e nos faz refletir. Até quando, ficaremos calados, amedrontados, assistindo ao circo de horrores que se expande no nosso país? Leiam a poesia e percebam a dor e a angústia da criança que assistiu ao assassinato do próprio pai.

 

SACRILÉGIO

Maria Aparecida D. Motta

(Uma cena da chacina na Favela do Jacarezinho)

O meu quarto era pequeno, simplesinho.

Era bonito arrumadinho

era o meu quarto de dormir...

Onde eu estudava                                                                                         

onde eu brincava

onde eu podia sonhar.

 

O meu quarto tão pequeno

era meu, onde eu guardava

os meus sonhos de criança...

 

O que fizeram do meu quarto?                                                            

Um monstro o arrasou

um monstro foi plantado

pelas mãos dos invasores!

Violentaram os meus sonhos

com mãos armadas de violência!

Inundaram de terror o meu quarto de dormir.

 

Destruíram o meu quartinho                                              

e eu não quero mais dormir.

Nunca mais eu terei sono,

apagaram os meus sonhos

de menina sonhadora...

 

Mãos malvadas apagaram vidas

inundando o meu colchão

de vermelho escorrendo

numa cena de terror!

 

Nunca mais eu entro nele,

no meu quartinho ensanguentado.

Nunca mais estará limpo,

nunca mais eu entro nele.

Tão criança sou ainda, tão menina

que sonhava sossegada!

 

Destruíram o meu quartinho,

antes sempre tão limpinho!

Digo a todos os malvados:

nunca mais irei dormir

destruíram o meu refúgio.

Foi sacrilégio dos covardes!

 

Destruíram o meu quartinho

e era ainda o amanhecer...

A noite agora vem chegando

o sono não virá e o medo se espalhará!

Muito medo deste horror!...

 

Diante de tamanha brutalidade que nos leva a desconfiar sobre a capacidade desses seres humanos sentirem algum sentimento, lê-se a notícia de que foi decretado sigilo por cinco anos, acerca dessa ação criminosa da Polícia do Rio de Janeiro, que vitimou num só dia 28 pessoas. Como agem as autoridades responsáveis pela direção desses policiais, cuja razão de existir seria trabalhar para garantir segurança aos habitantes de um bairro, de uma cidade, de um país?

 

Porém, de que modo poderiam atuar as forças policiais e militares, sendo diariamente incentivadas a praticar atos contrários à vida das pessoas comuns no seio da sociedade civil.  O que os motiva a essa prática tornada “normal” e regularmente realizada, como se do lado de dentro do muro, onde se instalam essas corporações, existissem apenas pessoas éticas, honestas, responsáveis, e, do lado de fora, predominassem os bandidos perigosos?  Quem não conhece as raízes profundas dessa erva daninha que se alastra no país, sobretudo nos últimos três anos: a violência?

Violência associada ao narcotráfico, violência associada à rede de prostituição de menores, violência associada às organizações fascistas, violência associada à subtração dos recursos públicos produzidos pelo trabalho dos cidadãos brasileiros, que pagam impostos e sofrem a consequência do sequestro da riqueza do país pelos “bandidos de colarinho branco”, sob diferentes formas de ações governamentais em parceria com setores privilegiados do mercado.

 

Estamos diante da violência que se imiscuiu na formação dos próprios policiais e militares por meio de um programa de deseducação instituído de norte a sul, leste a oeste e centro-oeste, pelos representantes das forças armadas que ocupam o poder no planalto central. Sem pudor, sem senso de patriotismo ou nacionalismo, emoldurado pela invocação de Deus, vê-se o cotidiano de um grupo que se apresenta como um simulacro de “dirigentes do Brasil”.  Foi elevada à categoria de regra de conduta normal “o excludente de ilicitude[1], que dá autonomia aos policiais para agirem livremente contra quem eles consideram bandidos, sem o risco de sofrer punições” (Kotscho, 29.05.2021)

Os cidadãos comuns tornaram-se alvo de ações de violência gratuita como ocorreu na cidade de Goiânia e [ontem] na cidade de Recife. As notícias publicadas informam as circunstâncias em que foram agredidas pessoas sem nenhuma conduta que justificasse sequer advertência e muito menos medidas repressivas, com uso de violência extremada.

“Foi o que aconteceu com um jovem negro, o youtuber Filipe Ferreira, que fazia manobras de bicicleta num parque da Cidade Ocidental, em Goiás, quando dois PMs desceram da viatura e um deles, de revólver em punho, deu a ordem: "Deixe a bike aí. Estou mandando!". "Mandando? Não é assim, não, eu sou trabalhador", reagiu o youtuber. Apontando a arma para a cabeça do jovem, o policial subiu o tom: "Coloca a mão na cabeça!" Filipe se recusou a cumprir a ordem: "Não é assim que se trata uma pessoa". O policial deu mais dois passos e o ameaçou: "Resiste aí para ver o que vai acontecer contigo!" "Eu tenho um canal no Youtube, não sou bandido", ainda tentou argumentar quando o outro policial o algemou com as mãos para trás”. https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2021/05/29/violencia-em-protesto-no-recife-afinal-quem-manda-nas-policias-militares

 

“A vereadora do Recife Liana Cirne Lins (PT) chegou a cair no chão depois que policiais militares jogaram spray de pimenta no rosto da parlamentar”. (Jornal 247).

 

"Dani Campelo foi atingido no olho. Infelizmente, será operado. Vai perder a visão. Ele nem estava no ato. Estava comprando material para o seu trabalho de adesivagem de carros", disseram os vereadores Dani Portela e Ivan Moraes”. (Jornal 247).

 

Kennedy Alencar nos aponta uma chave para compreender a razão pela qual se expandiram as ações de violência exacerbada nas fileiras dos oficiais:

“A afinidade do bolsonarismo com as PMs é uma ameaça real à democracia brasileira. Bolsonaro tem agido para criar um aparato paraestatal a fim de não aceitar provável derrota eleitoral no ano que vem. As suspeitas infundadas que lança contra o voto eletrônico e as falas diárias sugerindo que pode dar um golpe são estímulos a abusos de poder como o que ocorreu neste sábado em Recife. https://noticias.uol.com.br/colunas/kennedy-alencar/2021/05/29/pm-de-pernambuco-age-como-milicia-politica-de-bolsonaro

 

Tudo pode acontecer quando lidamos com variáveis imponderáveis da história, no entanto são potentes as demonstrações de entusiasmo legítimo dos contingentes de militantes, de todos os partidos progressistas comprometidos com a democracia, de todas as tribos que compõem essa maravilhosa tessitura da verdadeira história do Brasil. 

O que desejamos?  Queremos o Brasil livre das “forças das trevas”, o concebemos como um país justo para acolher e abrigar, com segurança, a todas as pessoas que trabalham e sustentam a existência da sociedade brasileira. Tenham elas os credos que professem, é fundamental cultivar, acima de qualquer outro interesse, a esperança de que a luta que necessitamos empreender não seja em vão, mas se realize para assegurar o futuro das crianças, dos adolescentes e dos jovens dessa nação amada, transformando-a numa sociedade em que prevaleça o bem comum e o desejo de construir o Brasil como um território socialista, radicalmente democrático, no qual prevaleçam as insígnias: “a defesa da vida vença o genocídio, a esperança supere a angústia, a alegria suceda o luto e a liberdade se espalhe por campos e cidades”. (Camilo Vanucchi). https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2021/05/29/vacinei-e-agora

 

[1] Pretensa figura jurídica concebida pelo então ex-juiz Sérgio Moro  com a colaboração de membros do Ministério Público Federal, integrantes da “funesta” operação Lava Jato.

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