O sono da razão produz monstros

Também no Brasil do século XXI, a razão permanece adormecida? “O sono da razão produz monstros”1.

Ao traduzir a realidade de sua época, por meio da sua arte, Goya estava se referindo ao contraste entre a Espanha e a França revolucionária. Talvez nutrisse certa afinidade com as aspirações da burguesia, ainda que se mantivesse como um dos “artistas da corte”. Tendo denominado o seu quadro: “O sono profundo da razão produz monstros” traduziu em imagens uma metáfora, que nos leva a refletir sobre o movimento da nossa mente entre o consciente e o inconsciente, ou ainda, a reiterar a contradição que nos habita e se manifesta na tensão entre a razão e os sentidos, objeto da reflexão dos filósofos, desde os gregos, até a atualidade. A motivação de trazer à tona essa pintura e esse tema, evidentemente está relacionada ao contexto da história recente do Brasil, no qual tem se tornado enfática a presença de uma tendência de pensar e de agir, em que se manifesta com certo destaque o lado mais obscuro e sombrio da subjetividade da espécie humana. Essa subjetividade é constituída por elementos diversos, inclusive, com maior ou menor grau de caráter negativo, de acordo com a formação alcançada, do ponto de vista filosófico, histórico, científico e ético. Em grande medida, ela é derivada de processos educativos, desde o núcleo básico no qual se originou: a família em qualquer de suas configurações, da mais tradicional à mais inovadora, além do próprio meio social numa sociedade capitalista como a nossa.

Nessa sociedade, prevalecem agentes educativos poderosos como o Estado e o Mercado. E a escola, qual o grau de influência da escola no desenvolvimento humano? Os educadores, de um modo geral, têm dedicado sua energia física e psíquica, para fazer o trabalho pedagógico, que é afinal o seu ofício, desde que optaram pela carreira do magistério. Mas, aí se iniciam os problemas que nos levam a refletir sobre a qualidade do trabalho pedagógico. O educador foi considerado no passado e, pasmem, até no presente, por algumas pessoas, como aquele que pratica o “sacerdócio”. Certamente essa imagem não brotou apenas do imaginário coletivo, mas tem uma derivação histórica do próprio fato de ter sido predominante, nos anos 30, 40, e, talvez, ainda nos 50, a presença de sacerdotes, ou ex-padres e ex-seminaristas, como professores dos cursos de magistério e de formação de professores em nível superior. Eu mesma, ainda nos anos 1970, no curso de graduação, tive dois professores que se encontravam nessa categoria e esses ministraram disciplinas importantes, porém eram extremamente conservadores.

Ora, essa visão de professores como sacerdotes sempre foi conveniente para os governantes que, consonante aos “preceitos políticos” da Segunda República, nem mesmo adotaram uma política nacional, para garantir o desenvolvimento da educação brasileira, tendo se originado então a necessidade de organização dos educadores como registra a história, para lutar pelo direito de todos à educação. Nesse sentido, estão inscritos os movimentos dos anos 30, com os Pioneiros da Educação, dos anos 50, novamente com o Manifesto organizado pelos educadores, com destaque para Florestan Fernandes, reiterando as mesmas proposições em defesa da educação pública, laica e de qualidade.

Sob ataque da ditadura empresarial-militar, vimos como a educação foi sendo atingida, em seu conteúdo e forma, tanto pela eliminação de docentes e administradores da educação, como pelas reformas de ensino, impostas de modo autoritário ao ensino fundamental e ensino médio, pela mediação dos interventores dos estados e dos municípios, como às universidades brasileiras, por meio das Leis 5.692/71 e 5.540/68. Ao mesmo tempo, os educadores foram protagonistas, juntamente com estudantes e trabalhadores dos movimentos de resistência na luta pela educação e pela democracia, tendo inclusive muitos desses militantes sido presos, torturados e assassinados nos porões da ditadura.

Essa história sistematizada por tantos pesquisadores brasileiros da área da educação, com destaque para Dermeval Saviani, com sua obra História das Ideias Pedagógicas, indica em que medida os professores, de quem se espera a “transformação da escola e até da sociedade”, foram sendo constrangidos em seu próprio processo de formação pelo poder político e econômico, concentrado nas mãos da classe hegemônica, em que se amalgamaram os diversos setores da sociedade. Desde a “elite nacional” até os segmentos dos “colarinhos brancos”, a opção foi assegurar a realização dos projetos a serviço do capital nacional e internacional, amplamente instalado no país, por meio da política econômica executada, a partir dos governos militares, e, posteriormente, pelos governos “democráticos”, inclusive pelos governos que se intitularam como “democrático-populares”.

Novamente, estamos às voltas com os militares após um breve interregno de apenas 35 anos, tempo histórico insignificante, para que nos livrássemos dos resquícios de um regime autoritário e, predominantemente, devastador no que se refere ao desenvolvimento da ciência, da educação e da cultura. De fato, nesse período de 35 anos, apesar da luta empreendida por amplos segmentos da sociedade civil, que foram importantes para a derrocada do último governo militar em 1985, tivemos o crescimento relativo de condições mais favoráveis para a educação e para a formação de educadores, sem no entanto, termos alcançado realizar as bandeiras fundamentais para a democratização da educação, na Constituição de 1988, na LDB de 1996, nos Planos Nacionais de Educação, momentos em que, mais uma vez, os educadores-militantes, os estudantes e trabalhadores de diversos setores, foram às ruas, ao Congresso Nacional, aos Fóruns de Educação, lutando para romper com os contingenciamentos feitos aos recursos para o financiamento da educação de qualidade.

Destacaram-se o avanço de teorias da educação, como a Pedagogia Histórico-Critica, da ciência com projetos que colocaram o país na vanguarda da produção científica, por exemplo, na pesquisa do Projeto Genoma, produção de aviões e navios, exploração de petróleo em águas profundas, produção de medicamentos que salvaram milhões de vidas da aids, ampliação da literatura e da cinematografia. Todas essas iniciativas expressam o resultado da formação de professores e pesquisadores, apesar da redução continuada de recursos para a área da educação, ciência e tecnologia.

Embora tenhamos, por um lado, expandido, aos trancos e barrancos, o ensino superior, a pós-graduação e universalizado o ensino fundamental, por outro lado, não se alcançou a eliminação do analfabetismo, nem o atendimento da demanda da educação infantil, em creches e pré-escolas. E, além disso, constatou-se a evasão e a retração de matrículas no ensino médio e na Educação de Jovens e Adultos (EJA), o que significa a interrupção de processos de escolarização, que no caso da EJA, quer dizer dupla interrupção, no período regular, e no período posterior, já considerado de recuperação tardia da escolaridade.

Além do mais, evidenciou-se o crescimento exponencial nos setores da educação controlados pelo setor privado, ganhando a primazia na área da formação de professores pelo sistema EaD. Os resultados que se refletem na realidade educacional do Brasil, na atualidade, têm sido divulgados amplamente pelos historiadores críticos e educadores-militantes, em seus artigos, livros, blogs, facebooks e milhares de lives realizadas em 2020. O quadro delineado se configura com dados que ampliam a nossa preocupação, quando se constata que nas escolas estão sendo educadas as novas gerações, pelos professores que tiveram uma formação mais restrita e fragilizada, do ponto de vista da pesquisa e da produção de conhecimento crítico.

Sabe-se desde há, pelo menos 25 anos, que o neoliberalismo assumido como ideologia e como política de execução de um projeto de desenvolvimento da economia, sobretudo, nos países periféricos, direcionado para a meta de supervalorização do capital e de maior produção de acúmulo da riqueza pela classe minoritária e, apesar disso, plenamente hegemônica no executivo, no legislativo e no judiciário, que têm sido alcançados seus objetivos não explicitados para a população em geral. Essa classe tem mantido o seu domínio sobre as classes majoritárias de trabalhadores, que permanecem, em percentuais variados, em condições de miséria e pobreza, apesar de ter se expandido, num período recente da história do país, o consumo e, portanto, o setor de produção de produtos supérfluos e descartáveis, aliado a um processo de substituição da produção da indústria nacional em franco declínio e a criação de empregos precarizados no setor de serviços.

O conhecimento acerca dessa conjuntura, por demais conhecida e analisada pelos intelectuais, pesquisadores, docentes e discentes de cursos das universidades e institutos de ensino superior públicos e alguns privados, ainda não foi suficientemente disseminado entre as classes populares, de modo que se possa almejar resultados diferentes nessa realidade adversa que assola o país. Não tem sido suficiente o nosso trabalho pedagógico e político, no sentido de educar-nos, a nós mesmos, para pensarmos mais radicalmente sobre as escolhas que fazemos, nem para se modificar o senso comum que prevalece articulado, de modo fragmentado, com elementos das crenças religiosas, dos discursos populistas dos políticos corruptos e também dos não-corruptos, das mensagens dos “influenciadores” das redes sociais, essa nova profissão que vem tomando a dianteira, em relação ao jornalismo crítico e investigativo, pela rapidez com que propagam as fake news.

Acabamos de encerrar mais um período eleitoral, dando continuidade a um sistema viciado e corrupto, mantido, inclusive pelos setores da sociedade civil que promovem a farsa de um processo democrático e sem fraudes, e, também, pelos setores da sociedade que o legitimam, ao cumprirem o “dever cívico” de votar, tendo conhecimento de que não deixaram de ser manipuladas as eleições, com certo grau de conivência do TSE, do STF e do Congresso Nacional, que, como parte do Estado capitalista, não adotaram medidas para reprimir os atos ilegais e responsabilizar os praticantes dos crimes eleitorais.

Como se se pudesse esconder de nós mesmos, a face obscura e sombria da realidade concreta, tentamos, muitas vezes, tergiversar em nossas análises e tentamos ainda nos consolar, em relação às constatações que nos impactam profundamente. Mas, é preciso ter a coragem de analisarmos a realidade, do modo como ela se apresenta, historicamente, no Brasil, cuja população, incluindo-nos para sermos justos, parece ser também atingida por outros quadros agravantes, além da covid-19.

Em meados da década de 1950, Erich Fromm, citado por Jonathan Cook, em artigo publicado no Boletim Outras Palavras2, do dia 26/11/2020, publicou seu livro The Sane Society (“A sociedade sã”). Nessa obra, segundo Cook, Fromm sugeria:

que a insanidade não se referia simplesmente ao fracasso de indivíduos específicos em sua adaptação à sociedade em que viviam. Mas que, em vez disso, a própria sociedade poderia se tornar tão patológica, tão desligada de um modo de vida normal, que induziria a uma alienação profunda e a uma forma de insanidade coletiva entre seus membros. Nas sociedades ocidentais modernas, onde a automação e o consumo em massa prevalecem sobre as necessidades humanas básicas, a insanidade pode não ser uma aberração, mas a norma. (COOK, 26/11/20).

Ainda, reproduzindo trecho do artigo de Cook, segundo Fromm: “O fato de milhões de pessoas dividirem os mesmos vícios não torna esses vícios virtudes; o fato de compartilharem os mesmos erros não os transforma em verdades; e o fato de milhões de pessoas terem em comum as mesmas patologias mentais, não as converte em pessoas sãs.”3

 

1 O sono da razão produz monstros é um famoso quadro de Francisco de Goya, pintor espanhol as vezes tido como o pai da arte moderna, mas conhecido como um dos principais pintores do romantismo espanhol, integra a coleção Caprichos e foi exposto em 1799. Na obra, Goya faz uma crítica ao que considera uma Espanha apanhada pelo sono da ignorância, da pobreza de espírito e vulgaridade ante a apatia dos acontecimentos revolucionários que marcavam a sua época. https://artout.com.br/o-sono-da-razao-produz-monstros/ acesso em 27/11/2020.

2 COOK, Jonathan. Greta Thunberg e o insano mundo dos normais. Boletim Outras Palavras, 26/11/20. Acesso em 26/11/20. https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/greta-thunberg-e-o-insano-mundo-dos-normais/

3 The Sane Society is a continuation of Escape from Freedom. (FROMM, Erich. The Sane Society, Kindle edition, 2013, Open Road Media. (acesso ao livro na edição Kindle, em 28/11/2020).

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