O mimetismo dinástico no Brasil

“Afinal, o que fizemos no campo da esquerda, para constituir um modus operandi mais coerente com os pressupostos teóricos que defendemos? Com qual pedagogia se realiza a educação popular, a formação política das classes populares, a organização da base na perspectiva de uma democracia radical? Será que mantivemos e manteremos a mesma tendência que se mostra mais divulgada: O Pai tá On?”

No dia 08 de março, houve uma explosão no twitter e o Jornal Brasil 247 publicou em seu blog diversas matérias sobre a notícia bombástica da anulação das sentenças, que incriminavam o Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa decisão monocrática do Ministro Fachin causou alegria, desconfiança e suspeita sobre as suas segundas, terceiras e quartas intenções, uma vez que ele permaneceu francamente contrário a todas as solicitações feitas, ao longo dos últimos anos, pela defesa de Lula, mantendo-se coerente com a avaliação que dele tinham o Procurador e o Juiz. Fachin era considerado um aliado fiel da Lava Jato.

Não pretendo tratar do labirinto da Lava-Jato, nem do xadrez que vem sendo jogado no âmbito do STF, desde que se instalou a “República Independente de Curitiba”. Claro, eu também fiquei feliz pela realização de um ato de justa decisão favorável ao “réu”, ao qual foram imputadas as ações de corrupção em todos os processos construídos, segundo a concepção de lawfare adotada pela Vara Criminal de Curitiba, sob a batuta do Departamento de Justiça dos EUA.

Como quem sobe muito alto como um balão junino, leva sempre um enorme tombo ao cair, os “heróis nacionais” foram ao chão, desde que se tornaram conhecidas as formas ilícitas, os procedimentos criminosos e as decisões descabidas e injustas adotadas por certos “Magistrados” de Curitiba, Porto Alegre e de Brasília, no âmbito das Varas Criminais, da PGR, do STJ e do STF.

No entanto, me chamou muita atenção a frase “Pai tá on” numa pequena notícia do Jornal 247, que compreendi como uma gíria para dizer que, a partir de agora Lula está liberado para participar do processo político de forma ativa e até, candidatando-se em 2022, ao cargo de Presidente da República.

É essa tendência em curso que me motiva a pontuar uma posição oposta a alternativa esboçada pelo PT, considerando a longa história da República desfigurada faz algum tempo, e ainda mais, descaracterizada, desde as eleições de 2018, em que foi eleito o OGRO, cuja feição perversa se agiganta.

Claro, numa perspectiva positivista e simplista da realidade poderíamos pensar que, para combater esse representante da Idade das Trevas o ideal seria apostar na extraordinária popularidade do Ex-Presidente. Ficaríamos aliviados, caso se encontrasse uma “solução” para o Brasil, materializando-se mais um mandato de um político, que tem sim grande relevância na história do país, no entanto não pode ser transformado num Salvador da Pátria, como um mito, como um PAI.

Por que razão tornou-se recorrente na História do Brasil esse modus operandi que criou, desde a Era Vargas, talvez, uma nítida dependência das classes empobrecidas, de modo mais explícito, em relação aos governantes, como se estivessem sempre em busca de proteção da figura paterna?

Claro, sobre esse aspecto da história do Brasil, textos elaborados no campo da psicanálise têm sido divulgados pelos psicanalistas em defesa da democracia, com participação ativa na sociedade brasileira, atuando por meio de práticas inovadoras de amparo às populações periféricas, na escuta de suas queixas e lamentos.

Para além dessa inovação, os psicanalistas pela democracia têm nos dado pistas da urgente necessidade de superação dos limites históricos impostos à formação do pensamento e à realização dos projetos de vida dos trabalhadores, em geral, bem como têm destacado também o caráter psicanalítico dos processos históricos. Esses que se reproduzem, desde a colonização até a Sexta República, denominada de Nova República, a partir de 15 de março de 1985, à conjuntura atual em que se aprofunda a realização do “neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”[1], impondo a austeridade como norma para as classes subalternas e não para os poderosos das classes dominantes.

Ora, ao se verificar as configurações políticas que se cristalizaram na maioria dos municípios brasileiros, nos diversos Estados da Federação e na estrutura do governo da União, entes federados que compõem a República Federativa do Brasil, pode-se evidenciar de que modo numa sequência de gerações que se sucedem, as famílias da oligarquia agrária associadas aos barões do agro, aos banqueiros e aos empresários que lideram o movimento da bolsa de valores, do país e do mundo, na ciranda financeira, continuam a se perpetuar ocupando cargos no executivo, no legislativo e no judiciário, desde o Império. Na maioria dos estados do país, existem exemplos clássicos da frondosa árvore genealógica dos políticos que expandem seus galhos, abarcando todas as regiões do Brasil, nas quais são identificados como herdeiros de “famílias dinásticas”.

Na atualidade, por exemplo, temos uma família que, apesar de ter sido   desconhecida em nível nacional, até 2018, tem se comportado de um modo tão voraz nos espaços dos poderes constituídos em várias instâncias, que explicita claramente seu anseio de se entronizar como mais uma dinastia, embora esse conceito tenha aplicação mais adequada para os impérios no passado ou, no mundo virtual, para as séries que se tornaram famosas nas redes de exibição de filmes on line.

Vislumbrando-se essa triste história do Brasil no passado e no presente, sempre sob a tutela de poderosos exploradores das riquezas e da força de trabalho no campo e na cidade, além dos que ocupam os postos de servidores públicos em todos os entes federados, qual seria o nosso horizonte, se forem mantidas as mesmas estratégias e táticas da esquerda a imitar a direita, no sentido de se manterem distantes das classes populares e para elas apelarem apenas nos momentos críticos das eleições?

Com quem falam os políticos em tempos regulares de realização dos seus mandatos? Por que meios estabelecem conexões com os diversos segmentos das classes trabalhadoras? De que modo dialogam com os mais empobrecidos e desvalidos, considerados como seres descartáveis, como se constata em meio à pandemia, sendo ampliado os percentuais dos atingidos pelo corona vírus e levados a óbito, sem que ninguém sequer saiba os seus nomes e a sua origem?

Assim como no episódio da Proclamação da República, sem qualquer participação popular, observa-se que não existe uma ação programática, organizada, com as pessoas, trabalhadoras e trabalhadores, em todos os setores de atividade, para explicar e demonstrar a necessidade crucial de seu engajamento nas lutas sociais, nas lutas pela sua própria emancipação, de modo coletivo e democrático.

O período destinado às campanhas eleitorais poderia ser um momento muito especial, para se fazer algo muito diferente do que usualmente ocorre. Por que não fazer uso do tempo para que a população fosse, de fato, esclarecida sobre as raízes dos problemas que assolam o país? Ao mesmo tempo também seriam explicadas as propostas de um novo projeto de desenvolvimento, de forma didática, sob a modalidade de exposições detalhadas, para que se tentasse romper com o rebaixamento do debate que prevalece nesse período, desfavorecendo ainda mais o entendimento crítico sobre a realidade.

As estruturas burocratizadas dos partidos, dos sindicatos, e até mesmo de alguns movimentos sociais parecem ser reproduzidas de tal forma, que a hierarquia garante a um segmento da “vanguarda” manter seu poder de decisão e de mando sobre o conjunto dos que estão na base dessas organizações. Nem no espaço da esquerda em movimento, nem da direita cristalizada, colocam-se como instrumentos de participação da maioria as consultas, os plebiscitos, as votações livres do compromisso com as correntes e vertentes, cuja gênese ocorreu em diferentes contextos e cuja transformação na atualidade precisa ser discutida.

Afinal, o que fizemos no campo da esquerda, para constituir um modus operandi mais coerente com os pressupostos teóricos que defendemos? Com qual pedagogia se realiza a educação popular, a formação política das classes populares, a organização da base na perspectiva de uma democracia radical? Será que mantivemos e manteremos a mesma tendência que se mostra mais divulgada: O Pai tá On? Por que criticamos a reprodução dos capos, mas também usamos a mesma prática de assumirmos o papel de PAI, de ESTRELA, de ÍCONE, de FAROL DA ALEXANDRIA? 

Quem educa o militante político para estar no coletivo, respeitando os companheiros, camaradas, amigos, irmãos, seja lá qual a denominação que se adote para denominar os pares, considerando que para a transformação do sistema, necessitamos, ainda no seio da velha ordem, fazer emergir o homem novo, o coletivo potente, a organização democrática no sentido pleno, de modo que não reste lugar para a reprodução de dinastias na esquerda?

Que enfim busquemos alternativas para não perenizar a mesmice enquanto projeto de país, porque a história corre veloz em direção a um futuro caótico, caso assim se mantenha a tendência em curso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 [1] Entre aspas está citado o título da obra Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, recentemente publicado pela Editora Autêntica, trazendo em três capítulos um trabalho primoroso de um conjunto de autores organizados por Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior e Christian Dunker. Os organizadores mostram em seus próprios artigos a relação entre a economia e a filosofia moral que está inscrita nos ditames do neoliberalismo, entre outros a proposição de “austeridade”, produzindo a  ampliação neoliberal do sofrimento.

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