Notas sobre educação e pandemia

"Já tive períodos complicados e com grande excesso de trabalho na minha carreira acadêmica - que registra 41 anos de atividade profissional como docente no ensino superior; mas nada se compara a esses período de pandemia..."

No primeiro texto, escrito em 18/09/2020, busquei registrar (para pesquisadores da historiografia educacional) as iniciativas editoriais concretizadas desde a fundação do Histedbr nacional, bem como as motivações para a abertura deste espaço, no formato de revista eletrônica, com nossos experientes e jovens pesquisadores produzindo matérias no interior de suas respectivas “colunas” - com característica mais solta, com menor preocupação formal, e voltada à temas livres, principalmente voltados às polêmicas conjunturais da educação. Busquei explicar que, à medida em que a liberdade de produção e de socialização acadêmica foram sendo atravessadas pelos interesses do capital, surgiu a necessidade de criarmos um novo espaço para a divulgação e debate acadêmico e que levou a esta nova revista eletrônica, sob a forma de colunas, no site do Histedbr.

Hoje fechei e encaminhei meu relatório da primeira licença sabática que usufrui na minha trajetória na universidade pública. Quando encaminhei a solicitação de licença sabática, em 01 de outubro de 2019, sequer passava pela cabeça ocorreria num período extremamente difícil e complexo, decorrência da pandemia de coronavírus que assolou o mundo e, em particular, o Brasil. Essa nova pandemia varre, ainda hoje, o planeta em todos os seus quadrantes e tem recebido inúmeras análises de virologistas e epidemiologistas, mas também de pesquisadores das ciências humanas e sociais e os seus efeitos econômicos, sociais, psicológicos e políticos dessa devastadora moléstia, só possível em decorrência da mundialização do capitalismo e da secundarização de preocupação com a prevenção de contágios e doenças, bem como o abandono de sistemas de assistência e previdência estatais dotados de caráter público.

Não é o caso de adentrar longamente nessas análises - que inclusive já produziram a publicação de muitas matérias na mídia corporativa, mas também na independente e crítica, na publicação de livros no formato de coletâneas e uma grandíssima quantidade de lives e ciclos de debates. Sobre o tema também busquei fazer uma análise de suas consequências para a educação, inserindo no contexto histórico do modo de produção capitalista e do avanço do golpismo e conservadorismo na conjuntura brasileira - tanto em algumas lives que participei, quanto na produção de textos para publicação. Mas é preciso registrar a ação anti-científica do governante-mór e seus partidários para a naturalização da pandemia, do contágio e da possibilidade de morte adotada por alguns governos (EUA, por exemplo). Impressionante a ação do mandatário-mór do Brasil em trilhar o caminho do falseamento ideologizado da pandemia e da morte, adotando políticas e posições genocidas contra pobres e marginalizados, principalmente as populações nativas e tradicionais, como quilombolas, ribeirinhos, caiçaras - por exemplo. Há boas matérias, críticas e com sólida argumentação,  produzidas sobre o posicionamento  do governo brasileiro frente à pandemia, marcado pelo negacionismo científico, pela irresponsabilidade política e administrativa, pela tentativa de ocultação de dados e de minimizar a gravidade da pandemia, recomendação de medicamento sem efeito comprovado para o tratamento, são algumas das principais caracterizações do governo Bolsonaro.

Mas será que é preciso registrar os efeitos e as consequências que a pandemia trouxe para o docente e pesquisador? Penso que é conveniente para registrar institucionalmente as condições  em que a licença ocorreu.

Primeiramente, registro que, neste período. tive a oportunidade de leitura de três relatórios publicados e amplamente divulgados, com análises sobre os efeitos e consequências da pandemia sobre o trabalho docente. Segue breve resumo, na ordem em que tive conhecimento. O primeiro tem por título "Trabalho remoto/ home office no contexto da covid-19" realizado por estudantes e pesquisadores, do Grupo de Pesquisa Trabalho e Sociedade (GETS) e pela Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (REMIR), da Universidade Federal do Paraná (UFPR)1 . O relatório quantifica a opinião dos docentes, principalmente de Curitiba-PR, evidenciando que o não substituiriam trabalho presencial pelo remoto, não fosse a pandemia; entendem os professores que o trabalho à distância é um dos meios meios para a realização do trabalho docente, mas este não substitui, no processo de ensino e aprendizagem, a relação presencial; com a pandemia, o trabalho domiciliar ampliou tanto a jornada quanto a intensidade do trabalho; merece destaque que a maioria dos docentes entende que ocorreu precarização, com redução da qualidade do trabalho docente; e, ainda, aumento das despesas decorrentes da realização do home office.

O segundo é um relatório de pesquisa realizada pela ADUSP sobre as condições de trabalho durante a pandemia2. Também essa pesquisa aponta o aumento de trabalho, com alguns dias estressantes para a organização do tempo, principalmente das mulheres que indicam que estão mais sobrecarregadas e têm piores condições de trabalho no período da pandemia, provavelmente por conta da tripla jornada de trabalho (universidade, família e afazeres domésticos), embora também um contingente significativo de homens apontem essa condição; a pesquisa também adentra sobre algumas características para a realização do trabalho docente, como a comunicação com os estudantes, principalmente por e-mail, a necessidade de adequação do material didático usado nas disciplinas e ainda as dificuldade para a plena continuidade e realização das pesquisas e atividades de extensão.

A terceira pesquisa a que tive acesso e que busquei para preparar uma palestra com professores da rede pública de ensino, tem por título “Trabalho Docente em Tempos de Pandemia”, realizada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (GESTRADO/UFMG), sob a coordenação da Professora Dra. Dalila Andrade Oliveira, e parceria com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)3. Essa pesquisa buscou conhecer os efeitos das medidas de isolamento social em função da pandemia da Covid-19 sobre o trabalho docente na Educação Básica nas redes públicas de ensino do Brasil. A quase totalidade dos professores das redes públicas (municipais, estaduais e federais) atuaram com atividades à distância durante a pandemia; muitos docentes não possuíam condições técnicas para o desenvolvimento das atividades, como equipamentos e preparo para o uso das atividades à distância; no que diz respeito aos estudantes, na opinião dos professores, 1 a cada 3 estudantes não possui acesso aos recursos para acompanhamento das aulas e realização das atividades; mesmo aumento a autonomia dos estudantes para acompanhar os conteúdos e atividades aumenta à medida que se avança os níveis de ensino, é significativa a quantidade de alunos que não têm autonomia que no ensino médio atingia 1 a cada 5 alunos; os professores também indicam que 35% das famílias não conseguem apoiar as crianças e jovens para garantir a execução das atividades remotas.

Aproveito para registrar algumas impressões pessoais sobre o assunto, pois sendo do grupo de alto risco (idade e cardiopatia) o isolamento, desde o anúncio do contágio pelo Covid-19 no Brasil, ocorrido em 26 de fevereiro de 2020, e oficialmente divulgado4, fato amplamente noticiado pela mídia e por todas as mídias (impressa, falada, televisiva e internet). Rapidamente o contágio varreu o Brasil, a exemplo do que ocorre/eu em todos os países do mundo. Como a pandemia teve início retardado no Brasil, era possível a tomada de decisões e a preparação do sistema de saúde para a prevenção, evitando que o contágio ocorresse sem controle. Bastava tomar como exemplo países que tiveram ação preventiva, daqueles que tomaram medidas insuficientes e que resultaram em cenas dantescas, face à dificuldade dos sistemas de saúde - hospitais e UTIs - darem conta do atendimento, bem como da grande mortandade e que levou ao colapso de sistemas funerários em vários países. Ainda tenho em mente as cenas da amplitude do colapso do sistema de saúde da Itália, bem como de seu sistema funerário, ainda na primeira quinzena do mês de março de 20205. Na América Latina também me lembro da dramática situação do colapso da saúde e sistema funerário do Equador, amplamente noticiados, inclusive com fortes imagens de corpos abandonados na frente das casas e incinerados no próprio local por familiares ou pela população6. No Brasil não foi diferente, com imagens também chocantes que rodaram o mundo, principalmente quando o sistema de saúde e funerário de Manaus, a capital do Estado do Amazonas, entrou em colapso, expondo e chocando pela precariedade de atendimento da população brasileira.

Já no início da pandemia no Brasil, a Unicamp tomou a decisão de suspender as atividades presenciais, buscando com isso preservar os membros da comunidade universitária, composto por pesquisadores e professores, servidores técnicos e administrativos e alunos do contágio pelo Covid-19. A medida foi tomada em 16/03/2020, com suspensão das atividades presenciais e dos eventos públicos na Unicamp, mantendo as atividades essenciais e as atividades da área da saúde7. Desde então a Unicamp mantém a suspensão das atividades presenciais, tomando uma série de medidas, regulamentadas e informadas à comunidade universitária8.

Gostaria, entretanto de perguntar: as medidas tomadas foram motivadas apenas pela preocupação com a preservação da vida e da saúde de professores, funcionários e alunos? Com certeza a Unicamp não é uma instituição onde reina apenas a harmonia e transparência, mas é um aparelho de estado marcado pelas profundas contradições características de uma organização social da sociedade capitalista. Rigorosamente, a dispensa das atividades presenciais, substituídas por trabalho domiciliar (home office, propagandeado como nova modalidade de organização do trabalho e idealizado como forma de trabalho realizado no conforto e aconchego do lar) é, de fato, um poderoso instrumento para redução das despesas de manutenção, ao mesmo tempo em que amplia o tempo de trabalho do trabalhador.

No caso da iniciativa privada, isso resulta simultaneamente em redução de custos das instalação, ampliação do tempo de trabalho produtivo, na precarização do trabalho, com ampliação da exploração pela clássica extração de mais-valia absoluta (aumento da jornada de trabalho, sem aumento salarial), bem como a intensificação do uso de tecnologia de comunicação e informação, com despesas correndo por conta do próprio trabalhador (uso da própria residência, de equipamentos pessoais, com pagamento da energia e internet contratada), aumentando por esse mecanismo a exploração de mais-valia relativa, pela ampliação do rendimento do trabalho do trabalhador. No caso da iniciativa estatal, esses mecanismos introduzem a um só tempo a atividade domiciliar no serviço público, a redução das despesas com a manutenção da estrutura física, a precarização das condições de trabalho, a introdução praticamente compulsória da educação à distância (EaD) e o aprofundamento e a ampliação dos processos de privatização da universidade pública (refiro-me às universidades públicas paulistas, mas acho que isso é igualmente verdadeira para as instituições de ensino superior brasileira) com a concretização ou ampliação dos contratos e convênios com as corporações que dominam o mercado de informática e de sistemas de gerenciamento do trabalho e da educação à distância.

Espaço público e privado se confundem, ampliando sobremaneira tanto o trabalho doméstico, quanto o trabalho docente, na pesquisa e na universidade. Já tive períodos complicados e com grande excesso de trabalho na minha carreira acadêmica - que registra 41 anos de atividade profissional como docente no ensino superior; mas nada se compara a esses período de pandemia, desde março último até a presente e que, com certeza, irá se prolongar até a vacinação em massa da população. Não consigo fazer uma exposição linear e clara sobre minha experiência pessoal neste período pandêmico; a contradição se expressa em sentimentos e ações durante este longo período de isolamento social, buscando preservar a saúde e a vida, nas condições possíveis para pessoas com alto risco de morbidade caso seja contagiado pelo Covid-19. Minhas sensações vão do conformismo com o isolamento ao mais profundo stress, da euforia em estar junto de minha família e da natureza recriada pelo trabalho, onde moramos e produzimos muita coisa, a um quadro depressivo pela (quase total) impossibilidade de circular e se relacionar com colegas, amigos e parentes.

Mas o mais complicado ao longo desse período foi a interpenetração entre cuidados domésticos, pesquisa e outros trabalhos e compromissos profissionais, com a multiplicidade de trabalhos e cuidados que vida no campo exige. O trabalho doméstico se viu multiplicado da noite para o dia, com toda a família em casa, as meninas tendo as aulas e atividades à distância, sendo necessária uma divisão de trabalho e de cuidados familiares. Mas a isso, no meu caso, há um complicador; morar num sítio na zona rural. Há uma visão idílica da vida no campo que é completamente diferente em sua concreticidade... É muito bom retomar a retomar a relação com a natureza e buscar produzir o que é necessário à existência, de modo orgânico e sustentável. Mas também isso implica em muito trabalho para domar a natureza e criar animais e cultivar a terra, produzindo frutas, verduras e legumes. Na cidade a maioria dos serviços são providos pela municipalidade ou por empresas;  na zona rural é preciso prover os cuidados com energia, abastecimento de água, esgotamento de dejetos, por exemplo. A pandemia e o isolamento impuseram restrições ao contato cotidiano de trabalhadores domésticos e diaristas que regularmente temos empregado, para nos liberar para o nosso trabalho remunerado.  Assim, tem ocorrido uma grande sobrecarga de trabalho, impossibilitando dar conta, adequadamente, de todas as tarefas a que somos submetidos.

Nessas condições de trabalho e de contraditórias experiências na vida e no trabalho, para fechar, lembrei-me do embate entre amor e ódio, ou vida e morte - que na mitologia grega foi encarnada pela metáfora da eterna relação entre esses opostos e expressos na relação entre Eros (ἔρως) e Thânatos (do grego Θάνατος). Como se sabe, a mitologia grega foi introduzida na psicanálise de Freud, para o qual a relação entre esses deuses foi reinterpretada como parte das pulsões contrárias que coexistem no indivíduo, pois, segundo Freud, o alvo da vida é a morte. Freud considerou as pulsões de vida como de Eros (também chamado de Libido, por Freud); a pulsão de morte foi caracterizada por Freud como um impulso instintivo e inconsciente para a destruição, para a morte, sendo por isso chamada de Thânatos.

Apesar desse sentimento contraditório entre medo e confiança, entre morte e vida, entre barbárie e socialismo, sempre relembro da afirmação de Marx que “A Humanidade nunca se coloca problemas que já não tenha condições para resolver, pois as mesmas condições que geram a consciência do problema são as que ajudarão a gerar as soluções.”, uma frase de Karl Marx, no “Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política”, escrito em 1859.

Esse entendimento repõe, cada vez que os indicadores mostram que não há solução e que sucumbiremos com a irracionalidade do capital que, em sua racionalidade de acumulação nas mãos de poucos, destrói a natureza e as condições de vida para a maioria dos homens. Ainda que a destruição esteja em acelerado processo e as transformações climáticas já sejam perceptíveis, considero equivocadas as teorias sobre o inevitável fim da história. Sempre me recordo do aprendizado do mito da Fênix (em grego antigo: ϕοῖνιξ): esta era um pássaro mitológico que, quando morria, entrava em autocombustão e, passado algum tempo, renascia das próprias cinzas. É possível, com base nessa mitologia, estabelecer um paralelo da Fénix com o Sol que, morre todos os dias no horizonte, mas renasce no dia seguinte, simbolizando o eterno círculo da morte e do renascimento da natureza e vida.

E A LUTA CONTINUA !

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1 Este relatório está disponível em: https://www.eco.unicamp.br/remir/images/Artigos_2020/RELATRIO_PARTE_II_TTRABALHO_REMOTO_COMPLETO_-_CANVA_1_compressed_1_compressed.pdf
2 O relatório da ADUSP pode ser acessado pelo seguinte endereço: https://www.adusp.org.br/files/covid/relatpesqpand.pdf
3 O relatório da pesquisa do CNTE pode ser acessado no link: https://www.cnte.org.br/images/stories/2020/cnte_relatorio_da_pesquisa_covid_gestrado_julho2020.pdf
4 A informação foi oficialmente dada em 26/02/2020 em matéria on line do Governo Federal, no link https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/02/brasil-confirma-primeiro-caso-do-novo-coronavirus
5 Para registro, sobre o colapso do sistema de saúde da Itália, arquivei esta matéria da BBC, cujo link pode ser acessado em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51968491; sobre a grande quantidade de mortos e o colapso dos serviços funerários, também arquivei a matéria que segue: https://www.brasil247.com/mundo/servicos-funerarios-da-italia-comecam-a-colapsar-devido-as-mortes-pelo-novo-coronavirus
6 Sobre o equador arquivei matéria da JP,cujo link pode ser acessado em: https://jovempan.com.br/noticias/mundo/coronavirus-equador-colapso-sistema-funerario.html; também as grandes redes reproduziram as notícias e as imagens, como a Globo e que está disponível em> https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/02/equador-retira-150-corpos-de-casas-em-guayaquil-em-meio-ao-caos-da-covid-19.ghtml
7 A notícia dessa decisão do reitor Marcelo Knobel foi através de comunicado na página da universidade, acessivel no link: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/03/16/coronavirus-resolucao-gr-242020-suspende-atividades-ate-12-de-abril;
8 Há uma página do Instituto de Geociências que elenca as decisões sobre a pandemia, com divulgação do link das resoluções e normatizações: https://portal.ige.unicamp.br/news/2020-03/resolucoes-gr-relacionadas-suspensao-de-atividades-presenciais-na-unicamp