Ignorância é amiga da maldade?!

"O incômodo aqui é com a culpabilização (ou a absolvição?) da ignorância pelo crime da amizade com a maldade!"

Recentemente, uma professora militante – das artes e das diversas lutas pela vida que temos sido obrigados a travar – publicou em determinada rede social uma sua foto com a palavra de ordem: “A ignorância é amiga da maldade!!” (duvidosamente atribuída a Sócrates). A relação aí estabelecida me deixou profundamente incomodada!

Consideremos que, nos últimos anos, no seio de todos os debates típicos desta tal “pós-modernidade”, ocorreu um profundo questionamento da razão, da ciência e da verdade. Consideremos que um assustador movimento de relativização e equiparação dos saberes que, na contramão da era das revoluções, trouxe de volta o obscurantismo! E não esteve apenas na ideologia! Tornou-se política! Deu direção à formação de professores! Determinou a educação da juventude!! Esta negação de um saber universal válido (que garante, inclusive, a comunicação), por contradição, na mesma medida em que promoveu um questionamento radical daquilo que é o saber, colocou em xeque a própria definição daquilo que é ignorância! Claro! Se todo o saber é válido, não há mais quem ignore, mas apenas quem constitua uma determinada coletividade com um determinado tipo de saber! Resolvida estava esta questão!

Eis que, então, reaparece na pauta a negação (ou o perdão?) da ignorância! É, pois, com surpresa, que vemos empunhada (como espada), a palavra de ordem: “A ignorância é amiga da maldade!!”.

A reconfiguração dos horizontes (recentemente conspirada) nos obriga a buscar saber o que está sendo posto em questão (no sentido de retomado) quando há recurso a uma palavra de ordem assentada num verbete (ignorância) que perdeu sua validade pela relativização daquilo que é conhecer!!!

 

De fato, a conjuntura de pandemia associada à política genocida do Governo Bolsonaro/Guedes/Militares/Milícias/Obscurantismo evidencia quanto a ignorância ameaça a existência. Ante a multiplicidade de absurdos e mentiras relacionados à violência verbal; ante à corrupção impune e ao nepotismo; ante ao descaso e negação de socorro aos trabalhadores pobres e desempregados, inclusive, pelo desmonte dos serviços públicos; ante a condenação dos trabalhadores da educação e da saúde a resolverem por si a pressão decorrente da pandemia nos hospitais e na formação das crianças e jovens nas escolas; ante à destruição de áreas verdes, dos animais e dos povos que as habitam; ante um governo do Capital financeiro associado ao latifúndio que está promovendo uma verdadeira e perversa devassa nos direitos trabalhistas, nos direitos sociais, nos direitos humanos e no ambiente, não temos quaisquer dúvidas acerca daquilo que é a maldade... sendo perfeitamente compreensível estabelecer a relação entre as ações deste governo com a maldade.

O incômodo aqui é com a culpabilização (ou a absolvição?) da ignorância pelo crime da amizade com a maldade!

 

De que estamos a falar? Não custa tentar recordar aquilo que o verbete avoca: “Ignorância [Do lat. Ignorantia] S. f. 1. Condição de quem não é instruído: [...]. 2. Falta de saber; ausência de conhecimentos [...] ; 3. Estado de quem ignora ou desconhece alguma coisa, não tem conhecimento dela [...]; 4. Falta de educação; estupidez; grosseria [...]”Quando adjetivo, diz-se “ignorante” a “[...] pessoa que ignora, que não tem conhecimento de determinada coisa. 2. Diz-se de, ou pessoa que não tem instrução, que não sabe nada: Como pode ocupar este cargo se é tão ignorante? 3. P ext. Bras. Falto de educação, ou aquele que não a tem; estúpido, grosseiro.” (FERREIRA, 2010, p. 1121). Interessante notar que o Latim distingue ignorantia (permanente e censurável) de ignoratio/ignoro (acidental e não censurável) (FERREIRA, 1988, p. 561).

Aquela professora lutadora, num apelo, empunha no cartaz (com fundo preto e letras brancas): “A ignorância é amiga da maldade”! Claramente censura àquele que porta a ignorância; àquele que ignora: olha com quem andas!!. Numa conjuntura em que a “maldade” assomou ao poder pelo voto popular, retoma-se (supostamente, de Sócrates) para lembrar/recordar/afirmar/concluir que a ignorância abre as portas para a maldade!! Num alerta, chamava aquele que ignora, à razão?!!

A quem se dirigia a professora? Minha suspeita é que a mensagem (ingênua?) possui três ou quatro direções: dirige-se à figura que ocupa o Palácio do Planalto, que torna concreta a tragédia da figura da amizade entre a ignorância e a maldade. Dirige-se também a uma direita raivosa, obscurantista, que (em um marco de evidência em 2013) crescentemente ocupa as redes sociais, as ruas, e pelos processos eleitorais, os postos de Estado (Municipais, Estaduais e Federais) até alcançar em 2018, a presidência da república e postos ministeriais, incluindo o Ministério da Educação. Dirige-se ainda ao processo de desinvestimento e desmonte da educação que deixa de garantir o combate à ignorância (e neste caso, estaria de punhos cerrados a “cobrar a conta de quem deixou a ignorância fazer amizade com a maldade?!)”. Pode estar se dirigindo, talvez, à letargia de um povo/classe incapaz de conter o caos e o desmoronamento de um projeto de Brasil que ingenuamente (por ignorância?) achou que podia encerrar a luta de classes e produzir ascenso para os trabalhadores pela conciliação (justamente, com a maldade dos interesses privados do capital).

 

Há aí diversas questões a explorar!

Primeiro: pode quem ignora reconhecer a maldade que lhe sorri loira, de olhos claros, atrapalhada e cômica no seu malandro jeitinho gingado? Considerando-se que possamos imputar a quem ignora a responsabilidade pelo que não sabe, o que deveria saber quem ignora para reconhecer e apartar-se desta associação com a maldade? Responsável pelos males com quem se amiga sua própria ignorância, onde (em que lugar) quem ignora devia buscar superá-la e dela separar-se? Segundo: É possível que quem ignora, justamente por que ignora, não possa ser responsabilizado por tal amizade com a maldade? Não sendo quem ignora responsável por não reconhecer a maldade a quem se alia, a quem responsabilizar pela amizade da ignorância com a maldade? A quem responsabilizar por, já conhecendo a maldade, não ter preparado e alertado a quem ignora a tempo de impedir o cultivo de tal amizade? Sendo quem conhecia a maldade, o responsável por deixar a ignorância a ela susceptível, o que deveria ter feito por quem ignora, para que esta pudesse reconhecer e afastar-se da amizade com a maldade? Terceiro: É possível que a ignorância tenha sido planejada para aprisionar e iludir quem ignora, e levá-la a uma amizade com a maldade? Existindo esta possibilidade, quem maldosamente traçou tal perverso plano? Quais caminhos foram usados para este aprisionamento e quais caminhos são necessários para o rompimento desta amizade nefasta da ignorância com a maldade?

Elaborar abstratamente as questões é um exercício simples de especular possibilidades. Produzir as respostas, entretanto, demanda ultrapassar as abstrações, procurando as determinações da realidade! O exercício de avançar na produção das respostas, nos leva obrigatoriamente a perguntar: como chegamos até aqui? Como chegamos ao ponto de deixar que justamente a ignorância (aquela mais vil das qualidades que sempre excluiu aquele que a porta), logo ela, tivesse o poder de aliar-se com a impiedosa maldade? Como foi possível à ignorância construir aliança tão poderosa?

 

Tempos de prestação de contas!!! Aceitemos a metáfora como forma!

Ignorância e maldade são um duro presente com passado! Estão (ambas) sujeitas ao desenvolvimento, ao movimento e à mudança (e por isso penam neste eterno esforço de conservação)! Estão ambas contraditória e estruturalmente determinadas!! Têm múltiplas determinações!

Ignorância e maldade têm classe! São práticas de classes! A ignorância é produzida em relação subordinada com as classes que efetivam e põem em movimento a maldade! Contraditoriamente, a maldade é um poder atribuído pela ignorância! A ignorância é classe subalterna, a quem foi cassado o direito de reconhecer-se e reconhecer sua própria condição: suas tradições de luta no mundo e no solo brasileiro, seus heróis e as causas que defenderam, os referenciais científicos que ensinam que os subalternos (ignorantes) fazem a história quando (não) se rebelam contra os dominadores. Ignorância resulta da negação da história como formação e resulta da negação planejada de teorias científicas para a análise desta sua condição (de ignorância).

A longo prazo, ignorância e maldade resultam do latifúndio, escravatura, monocultura, monopólio e acumulação privada! Têm a ver com solução da “questão social” (as massas expropriadas que se rebelam por seus direitos) pelo chicote, pela bíblia, pela bala, ou... pelo voto! Tem a ver com o adiamento da reforma agrária, da reforma urbana, do controle das forças produtivas por quem efetivamente trabalha e produz a riqueza. Tem a ver com a subordinação (no movimento de uma esquerda para o capital) à derrocada das referências centrais para a evidenciação crítica do que está em questão nas relações de produção capitalistas. [Tem a ver] Com a subordinação à negação da luta de classes; com a aceitação do silenciamento da referência à classe trabalhadora até converter-se em “colaboradora” da acumulação privada (em conciliação “pelo bem” de “um Brasil de todos e para todos”, com a maldade!). Resulta de um processo de distribuição de migalhas para os trabalhadores (e bilhões para banqueiros, planos de saúde privados, corporações educacionais e igrejas)! De uma política de contenção que operou o divisionismo e o apassivamento em lugar de formação política de base. Resultam de uma aliança política com os interesses econômicos na exploração da fé, sempre nutridos para produzirem mais ignorância!! Os templos (só no Timor Leste?) que o digam quanto poder político tem o poder econômico das igrejas! Os parlamentos que o digam quanto poder político e econômico têm as igrejas!!! Na tradição da classe trabalhadora brasileira que chegou ao Estado (veja-se onde a associação da maldade com a ignorância foi nos levar) a igreja foi chamada a governar!!!

Esta amizade da ignorância com a maldade tem a ver com uma questão mal resolvida relativa à solução dada aos anos de Ditadura. Resulta de não termos cobrado a conta dos mortos pela perseguição e pela tortura daqueles que constituíam as várias forças de esquerda que ousavam projetar outro Brasil. Acima de tudo, ignorância, no caso conjuntural brasileiro em que vivemos, corresponde a um projeto de classe (em alinhamento com o império do Capital) que foi absolutamente favorecido pelo rebaixar-se dos intelectuais que reivindicaram a pós-modernidade!!! Resulta também de um populismo que não resolveu o analfabetismo e não resolveu a garantia da educação para todos. Que não deu o duro combate a falta de recursos para a educação pública, sujeitou-se as determinações dos organismos internacionais e operou certificação em lugar de formação com consistente base teórica.

Ignorância tem passado, decorre de processo. Tem a ver com o modo como temos educado aos homens e às mulheres; aos pobres e aos ricos. Tem a ver como temos tratado o conhecimento como luxo e não necessidade básica da classe trabalhadora (a ignorância?)!!

 

Os que gostam dos estudos biográficos podem acertar contas com esta trajetória de um “expulso” da corporação militar que (impune) se liga aos milicianos para disputar o poder de Estado. Formar um exército “político-militar” na prole e no crime que “milita” em causa própria. A maldade resulta de uma mentalidade de capitão do mato; do adiamento da reforma das polícias; dos baixos salários nas corporações policiais, e da necessidade de bico extra-trabalho. A maldade é servidor público com salário rebaixado, obrigado a fazer segurança privada para manter a existência. Se consolida e se espalha formando aglomerados de homens da lei fora da lei que disputam na base do terror a lei que realmente vale!
Ignorância é filha da indiferença, da negligência, do descaso com a coisa pública. Cresceu nas terras cariocas, circulou desaforada por dentro da corporação militar, e caiu nas ruas do Rio, anárquica, falando pelos cotovelos seus preconceitos válidos como liberdade de pensar.
E agiu! 
Tornou-se a expressão vocal (da ignorância e da maldade) na insatisfação com a vida!! Levou aos subordinados à condição de feitores a serviço da maldade, a constituírem seu próprio poder armado e político. Cresceu! Controla segmentos do crime até aqui inimaginados, inconfessáveis, misteriosos, assustadores!!

 

Arrancada do seio de sua classe, imbuída da mentalidade de capitão do mato, a ignorância traveste-se de maldade! Entrega seus filhos à maldade a quem [a ignorância] serve contra seus próprios interesses. Em sua amizade com a maldade, a ignorância mata sua própria gente!! Os índios, os negos, as mulheres, os jovens, as meninas, os homens das favelas do Rio, Rafael Braga, Marielle e Anderson que o digam!! Têm muito o que dizer!

Esta ignorância nos apavora... Mas criou-se ali no quintal de casa... Na troça com que levamos o que devia ser recusado e condenado...

 

Ignorância, definitivamente, só pode ser explicada! Não pode explicar!! É bruta!! Mas tem passado! Inclusive aquele que nos recusamos a encarar...

Valorizaram a diversidade, considerando todas as formações válidas!!! Esta foi a grande reivindicação feita por um segmento importante de educadores que dirigiram a educação pública. Defenderam: não existe ignorância, o saber é relativo! Todos tem algo a dizer! Como agora dizer que a ignorância (no seu ser diverso e relativo tão valorizado há poucos dias, ou a toda hora) é responsável por fortalecer a maldade com sua amizade? Por que, neste caso, e agora, a ignorância é importante? Quando a ciência foi jogada fora (tornada conhecimento de minorias); as macroteorias foram ridicularizadas e refutadas; o conhecimento relativizado a ponto de estar colocado no mesmo patamar das crendices, dos mitos, da religião (quando a religião foi convidada e eleita para assumir o Estado); a maldade da ignorância entronizada; a quem interessa agora que a ignorância (solitária e levada à amizade com a maldade) procure um seu nunca conhecido contraponto? Que contraponto é este que está sendo reivindicado contra a ignorância? Deixando de andar com a maldade, com quem a ignorância deveria andar?

A ignorância é a ausência de escolaridade? Falta de Universidade? De escola básica? O que definiu FHC – o príncipe da sociologia (o conhecimento esnobe que entroniza e silencia os poderes da riqueza e oprime os pobres)? Como o ex-operário era chamado?? Ignorante!! Não falava com correção a língua pátria!! Faltava-lhe a Universidade!! Mas muito conhecia das artes do poder de Estado (das artes da conciliação que lá põem um soberbo soberano)!! A ignorância é escolaridade rebaixada associada a uma confortável posição de classe e à malandragem que vai produzindo as Bestas? Mas não é a ignorância, aquela proclamada liberdade do tipo brasileiro de ser como ele culturalmente é, que leva às elites a sonharem com a educação dos filhos no estrangeiro e a moradia fora do Brasil, para descontaminar-se do “tipo” indesejado que “nós” (em extrema diversidade) somos?? Aquela que se vende (sem rodeios e disfarces) aos encantos do Império em decadência, entoando-lhe hinos?

 

Em tempo: sem chance de imputar esta conta à vaga e vasta (abstrata) "esquerda"! Justamente, foi a associação da ignorância com a maldade que apagou o segmento que defendeu teoria social cientificamente desenvolvida de caráter materialista e dialético, interessada pelas determinações objetivas, pela contradição da luta de interesses de classe divergentes, pelo movimento da luta de classes no tempo, pelas mudanças na correlação de forças. A maldade usou da ignorância e empurrou para o escanteio, o assédio e a tortura aqueles que defenderam esta formação.

Ignorância? Múltiplas são as tuas faces!! Verbete dos mais utilizados para "xingar" o presidente do diverso Brasil que o inclui, efetivamente, como criatura!! Utilizado também para xingar o povo que o elegeu (a ignorância que se aliou com a maldade)!! Estamos dizendo com todas as letras que esta "ignorância" não cabe!! Vamos ter que dizer como ultrapassar esta ignorância e convencê-la quanto às vantagens de apartar-se da maldade! O problema é que vamos ter que nos sustentar em tudo aquilo que foi negado à ignorância conhecer para dizer fora amizade da ignorância com a maldade! Fora maldade que produz a ignorância!!

Aí, é claro que a experiência de classe pesa muito!!

Mas um horizonte que ultrapasse os primeiros 15 anos do século 21 ajuda bastante!!