Histedbr: Verdade escolástica ou análise fundamentada?

"Como observei anteriormente, defendo a superação das diferenças e a busca de unidade tática para a superação dos entraves para a organização e formação das massas populares. Há avanços e retrocessos nesse processo, do qual nem todos os partidos se dispõem sequer a participar das conversas e análises das transformações históricas e da conjuntura, julgando que estão com a verdade histórica, cravando uma afirmação aparentemente bombástica: temos uma perspectiva revolucionária e vocês não passam de reformistas!"

Apesar de ter sido formado para constituir-se num grupo de debate do nosso coletivo de pesquisa nacional, o grupo de WhatsApp “Histedbr em debate”, nem sequer configurou-se como um grupo de pesquisadores membros dos diferentes GTs vinculados ao histedbr, foi sendo gradativamente capitaneado pela disputa apaixona, de caráter político-partidário, na qual também ocorre a disputa pela hegemonia do movimento sindical, particularmente dos docentes do ensino superior - o Andes-SN. Isso apesar de muitos de nós considerarem que um grupo de pesquisadores, tendo como foco de sua análise a educação, tomem a atuação política, partidária, sindical ou qualquer outro aspecto ou forma de organização como seu objeto de estudo e debate teórico, no qual a demonstração dos argumentos teóricos devem encontrar respaldo na observação acurada da realidade histórica.

Não foram poucas as tentativas de chamar os participantes do grupo ao “bom senso”, bem como para os objetivos que norteiam o nosso coletivo de pesquisa e no qual deve prevalecer o debate crítico e não as disputas apaixonadas por supostas verdades político-partidárias ou de chapas que disputam a eleição do nosso sindicato nacional. A análise fundada na pesquisa pressupõe método e teoria, fundamentação e demonstração. As verdades da paixão decorrem da crença, do sentimento intenso, quer tenham origem na religião, na política, e até mesmo no senso comum. É a substituição do debate ancorado na demonstração e na ciência, pelo embate escolástico fundado em verdades pré-estabelecidas, quer sejam ancorados em concepções teórico-metodológicas dogmáticas, nas opções religiosas, partidárias ou meramente rastreadas na opinião ou pura e simples emoção.

Ainda estamos em plenos debates acalorados, motivados pela opção por uma das chapas que concorrem ao Andes-SN e que mal acobertam as disputas político-partidárias. Na minha opinião o grupo “Histedbr em debate” deveria voltar-se ao objetivo que justificou a sua criação, qual seja:ser um espaço de debate livre e plural de pesquisadores da educação, que estudam e pesquisam a educação sob várias perspectivas e tendo vários objetos particulares de investigação. Os embates político-partidários, bem como os partidarismos sindicais, podem e devem ser feitos nos espaços políticos e sindicais, que com certeza os envolvidos nessas pendengas participamos. Num grupo de pesquisa espera-se que se tomem em questões para investigação, em conformidade com os rigores do método e da metodologia de pesquisa adotada, preferencialmente oriunda da concepção materialista dialética da história.

Também têm buscado ponderar no grupo de WhatsApp “Histedbr em debate”,  minha velha amiga e camarada de lutas, Maria de Fátima Félix Rosar que, no dia 11/10/2020, escreveu uma longa mensagem que cito em seguida (ipsis litteris):

“Carxs companheirxs dessa lista, penso que estamos correndo alguns riscos metodológicos: a contradição parece desaparecer, a dialética parece se diluir e o bom senso parece se perder se não mantivermos o cuidado com a historicidade e a criticidade, sempre. Nossa identidade como historiadores críticos, marxistas, nos estimula a perspectivar o futuro, aprendendo as lições da história. Qualquer pretensão de um novo governo de esquerda precisa, do ponto de vista marxista:

- admitir que os movimentos da sociedade civil organizada têm legitimidade para reivindicar, protestar e pressionar os governos, que se identificam como democráticos e populares;

- não podem ser enquadrados numa lei antiterrorismo, os movimentos que apenas se expressam, discordando de políticas, de fato anti-democráticas, porque surgem legitimadas por um parlamento, que se considera ilegítimo, mas ainda assim considerado como instância que representa os interesses da população; 

- governos democráticos populares podem utilizar os instrumentos constitucionalmente instituídos para as consultas à população por meio de referendos e plebiscitos,  pelos quais pode-se pressionar o parlamento burguês enquanto existir;

- os governos de esquerda precisam definir como prioritários em seus orçamentos os investimentos na agricultura familiar e não no financiamento do agronegócio; 

- precisam tb regularizar definitivamente a posse das terras dos indígenas e quilombolas, que permanecem vulneráveis e submetidos à tirania e violência dos latifundiários;

- não pode perenizar tb o financiamento do setor privado de ensino superior, sob o argumento da democratização da educação. A soma de recursos investidos nos programas para favorecimento dos segmentos ainda não incluídos no ensino superior, não pode ser admitida como política [de] democratização desse nível de ensino. Foram fortalecidos de tal modo os conglomerados do setor privado que o ensino superior público tem uma matrícula muito inferior, como sabemos; 

- a saúde e a educação não poderão continuar a ser apresentadas nos discursos populistas como prioridade, se de fato não se fizer, radicalmente, a universalização desses bens públicos, patrimônio de todas as pessoas que habitam o país; 

Ah, pode-se pensar faltará dinheiro para meta tão ambiciosa. Então, faça-se, enquanto não se vislumbra a revolução, a reforma tributária para distribuir a riqueza concentrada num pequeno grupo de milionários ou bilionários, cujo patrimônio resulta, na grande maioria dos indivíduos que constituem o grupo dos "ricos", da "elite", de apropriações indébitas,   ilícitas do patrimônio público.

Antes de finalizar apenas uma pequena parte dessa reflexão compartilhada, destaco que, definitivamente, um governo de esquerda não poderá manter uma opção inconciliável entre realizar uma política social de caráter compensatório e uma política neoliberal em termos macro-econômicos.

Ainda tenho esperança de que vamos usar o bom senso reconstruído historicamente, por meio da negação e da superação.”

Concordo com as observações da Fátima Félix, mas considerando o que afirmei nos parágrafos iniciais. Não há riscos metodológicos, pois a crítica metódica, exigência metodológica da concepção materialista dialética da histórica, foi substituída pela crítica da crítica às opções políticas, partidárias e sindicais; a razão pela paixão e, com isso a dogmática, que ultrapassa a volta às raízes, como ortodoxia, substituindo o método e a teoria e, com isso, o que tem ocorrido é que a contradição desaparece, a dialética se dilui e o bom senso se perde, substituído por leituras interessadas que não tem cuidado com a historicidade e a criticidade. Concordo também com cada um dos itens elencados pela Fátima: - a legitimidade da sociedade civil organizada em reivindicar, protestar e pressionar os governos, que se identificam como democráticos e populares; - incabível a lei antiterrorismo aprovada no governo petista; - considero legítimo o uso de referendos e plebiscitos para mecanismo de consulta popular e pressão parlamentar; - é fundamental garantir investimento em políticas sociais, como na agricultura familiar, na educação e na saúde; - é reparar a perseguição histórica aos povos originários, a garantia da posse  das terras indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras e outros povos “tradicionais”, colocando-os a salvo da violência dos grandes proprietários; - recursos públicos devem ser destinados a garantia de direitos públicos, como à alimentação à habitação, à saúde, à educação, à previdência e assistência social, etc., criando mecanismos para impedir que recursos “públicos” sejam privatizados. Também considero inadmissível que um governo de esquerda promova uma política de conciliação de classes, realizando uma política social de caráter compensatório para a massa que vive do trabalho e uma política neoliberal benéfica aos grandes monopólios.

GOSTARIA DE OBSERVAR PORÉM que, de forma geral, as observações críticas são feitas para o PT e os mandatos dos governos petistas. Crítica apaixonada, também tem levado a defesas apaixonadas. Olhando para o retrovisor da história, pode-se constatar que o PT que disputou e ganhou as eleições presidenciais de 2002 e que governou o Brasil de 1o. de janeiro de 2003 a 31 de agosto de 2016, não era mais o partido que se organizou no bojo das lutas dos trabalhadores contra a exploração, acelerando o fim da ditadura militar. O Partido dos Trabalhadores que muitos de nós ajudou a fundar, era um partido que surgia renovando as esperanças de organização dos trabalhadores em bases políticas, bem como na formação crítica dessas bases. Na efervescência do final da década de 1970 e início dos 80, o discurso classista das lideranças sindicais (principalmente do sindicalismo metalúrgico) e das Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs) e de intelectuais progressistas, adeptos de diferentes concepções filosóficas e científicas, conclamava os trabalhadores do campo e da cidade a lutarem por mudanças na sociedade, se apropriando de um difuso discurso de construção da sociedade socialista, sem clara definição estratégica ou tática sobre qual socialismo era defendido.

Gradativamente o projeto político socialista foi sumindo do horizonte petista, bem como a defesa intransigente dos interesses dos trabalhadores do campo e da cidade. As tendências reformistas foram, gradativamente, hegemonizando a direção do partido, e com elas suas teses estratégicas e táticas foram se sobrepondo àquelas vindas das tendências e agremiações de esquerda, sob o amplo guarda-chuva petista. De uma disputa eleitoral para outra o grupo majoritário e hegemônico do PT buscava afinar seu projeto e suas diretrizes, inclusive quanto ao financiamento das campanhas, para avançar quantitativamente as vitórias, ampliando o número de vitórias para os legislativos (municipais, estaduais e federal), bem como para cargos executivos (idem). Se no início a identidade do PT era de um partido de classista, socialista e de esquerda, gradativamente o grupo majoritário foi convergindo o partido para uma perspectiva social-democrata; da também foi abandonando a difusa referência à revolução e foi assumindo uma postura reformista; de partido dos trabalhadores do campo e da cidade, o grupo hegemônico foi tornando o PT uma agremiação defensora da conciliação de classes para promover o desenvolvimento do país.

Essa gradativa mudança nos rumos do PT culminou com a assinatura, por Lula, em plena efervescência da campanha presidencial de 2002, da “Carta ao povo brasileiro”, assegurando ao empresariado que, se vitorioso, respeitaria os contratos nacionais e internacionais. Era um compromisso com a continuidade do projeto neoliberal e CONTRADITORIAMENTE, de implementação de um projeto desenvolvimentista, garantindo a acumulação de capital, e ao mesmo tempo de avanço na adoção de políticas sociais. Não é possível ignorar que houve tanto benefícios à burguesia, com o Estado garantindo a acumulação do capital, bem como foram significativos os avanços nas conquistas sociais pela massa dos que vivem do trabalho. Os discursos de Lula retratam essa política conciliatória adotada, evidenciando os ganhos das empresas e bancos, bem como as conquistas sociais para os pobres e famintos, sintetizado em vários programas de governo.

Mas essas contradições não atravessam apenas o PT, nem mesmo apenas seus governos, pois também afetam a organização e a vida partidária no amplo arco das organizações e partidos de esquerda. Primeiramente, porque efetivamente o PT tem um amplo quadro de filiados. Todos os demais partidos de esquerda juntos apenas chegam a 41% dos filiados petistas, conforme os dados de 2020, a seguir:  PT - 1 534 994; PCdoB - 416 088; PSOL - 186 532; PSTU - 15 815; PCB - 12 754; PCO - 4 352 e UP - 1 116.

Dados quantitativos não falam por si, mas precisam ser analisados histórica e conjunturalmente, apesar dos dados saltarem aos olhos, aquilatando o enraizamento e a importância política das diferentes organizações partidárias. Trazer à baila polêmicas em torno de algumas questões levantadas por algumas dessas agremiações é desproporcional, pois uma coisa é a discussão da conjugação entre partido de massas e partido quadros no PT e outra é nas agremiações que sequer ultrapassam 2 mil dezenas de filiados. Todos os debates se tornam mais complexo, numa perspectiva de democratização das instâncias, quando se tem 2 mil dezenas de filiados, da discussão e encaminhamento com um milhão e mais de quinhentos mil filiados. Não estou querendo menosprezar as organizações político-partidárias de esquerda, mas apenas mostrar a complexidade e dimensão dos problemas e das perspectivas que temos. Lamentavelmente, a análise das lutas revolucionárias vitoriosas e que levaram à construção de formações sociais socialistas, capitaneadas por Partidos Comunistas, resultaram de alianças político-partidárias e de alianças das diferentes frações da classe trabalhadora. Foi necessário superar as rupturas, forjando alianças que tornaram possíveis as vitórias das revoluções.

Tenho defendido a premência de uma frente programática e tática de esquerda, se quisermos superar os entraves de organização e formação das massas populares. Mas essa não é uma tarefa nem simples ou nem fácil e esbarra em questões teóricas, programáticas e práticas. Mas perguntar não ofende: como um partido que não tem sequer bases políticas pode  impor sua plataforma estratégica para uma organização com milhares de filiados?  Também há diferenças organizativas, desde partidos fortemente centralizados, com unidade de comando, a partidos com várias divisões internas, amplo debate interno e convivência de tendências e organizações internas.

O PT é um dos partidos, não o único na esquerda ou na direita, com várias divisões internas, disputa, amplo debate e convivência aguerrida entre as tendências e organizações em seu interior*. As disputas e divisões internas  se explicitam na defesa de diferenciadas e até antagônicas teses estratégicas e táticas, por ocasião do processo eleitoral interno para a composição da direção nacional, composta pela representação relativa à votação de cada chapa (expressa em suas teses). A última eleição interna do PT ocorreu em 2019 e teve os seguintes resultados (absolutos e porcentuais) para um total de 351.034 votantes: 

Para entender os rumos e as decisões, bem como a construção estratégica e tática do PT a nível nacional, é preciso entender as tendências que essas chapas representam, como segue: a corrente majoritária (CNB + agrupamentos regionais) teve 51,1% dos votos; a Democracia Socialista – DS + MS (Renato Simões) + AVANTE (Arlindo Chinaglia) + agrupamentos menores e regionais – 13,7%; Resistência Socialista (Paulo Teixeira, Lindenberg etc) + agrupamentos menores) – 11,1%; MPT/TRIBO/ Independentes – 8,8%; OPTEI (RUI FALCÃO) + EPS + GENOINO + BRENO ALTMAN – 5,1%; Articulação de Esquerda (AE) – 4,9%; O Trabalho – 2,1%; Na Luta, Ruas e Redes Lula Livre (Dissidência da CNB) – 2,0%; finalmente Repensar o PT ( Jacy Afonso, Ricardo Berzoini e Letícia Espíndola) – 1,2%.

O mesmo debate que ocorre entre os diferentes partidos em torno das interpretações sobre a transformação histórica, da conjuntura e das várias questões que animam o debate político-partidário no Brasil. Esse é praticamente o mesmo embate que ocorre no interior do PT e também de outros partidos que convivem com tendências ou agrupamentos em seu interior, ou mesmo “rachas” de qualquer natureza. No caso do PT há uma configuração quanto aos posicionamentos que pode ser sintetizado, a partir do resultado da disputa do ano passado, da seguinte forma: a direita do PT tem hegemonia histórica (aglutinando: CNB + as duas últimas chapas) totalizando  54,3%; o centro (ocupado pelo MPT) - 8,8% e a esquerda do PT compreende atualmente 36,9% dos representantes na direção nacional.

Como observei anteriormente, defendo a superação das diferenças e a busca de unidade tática para a superação dos entraves para a organização e formação das massas populares. Há avanços e retrocessos nesse processo, do qual nem todos os partidos se dispõem sequer a participar das conversas e análises das transformações históricas e da conjuntura, julgando que estão com a verdade histórica, cravando uma afirmação aparentemente bombástica: temos uma perspectiva revolucionária e vocês não passam de reformistas! Entretanto, para além de embates sobre estratégias e táticas político-partidárias, as saídas conjunturais e históricas não dependem da vontade (ou pressuposição de estar com a verdade) de um partido ou de seu maior ou menor quadro de militantes, mas do embate político entre classes e frações de classes, do nível de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, impondo as condições objetivas e subjetivas para a superação da ordem vigente. Essa luta entre classes e frações de classe se dão.

A revolução não é apenas e tão somente a tomada do poder pelos dominados, pois esse esse é o momento histórico que marca, que se realiza, com a transformação estrutural da totalidade histórico-social. Em outras palavras, citando Marx para fechar: “uma formação social jamais perece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém… e relações de produção novas e superiores nunca aparecem antes que as condições materiais de sua existência tenham amadurecido no seio da própria sociedade“.

Tentei estruturar este texto para trazer o debate para a sessão colunas, buscando colocar um pouco de dados e questões para provocar a continuidade do debate sobre os rumos da política educacional e sindical na complexa conjuntura nacional. Não há verdades estabelecidas dogmaticamente para a pesquisa. O que é verdade para um, não passa de dúvida ou problema que a pesquisa (e o pesquisador) deve tomar como ponto de partida, e para tanto, sugiro tomar como referência as observações sobre o método da economia política de Marx.

Vença quem vencer para o Andes-SP ou nas disputas eleitorais para os municípios brasileiros, tenho certeza que a história não terá fim e que

A LUTA CONTINUA!

 

Há um texto bastante didático, traçando um mapa sintético da esquerda partidária e suas tendências e organizações internas: Leandro Eliel. Cartografia da esquerda no Brasil. o link para acessar o texto é: https://www.pagina13.org.br/download/revista-esquerda-petista-n-10/

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