E eu, Doutor Carlos?

"O indivíduo foi enterrado pelo Marx adulto. Será?"

“Doutor Carlos” aqui é Karl Marx, cujo prenome Karl em alemão dá Carlos em português e cujo título de doutor não inventei, foi alcançado com uma bela tese sobre Demócrito e Epicuro, defendida na Universidade de Iena em 1842. E “eu”? Seria o autor do artigo? Não, “eu” aqui é o indivíduo humano, a pessoa singular. Inicialmente pensei em intitular estas linhas, de maneira acadêmica, como “O indivíduo em Marx”. Dá na mesma. Prefiro a informalidade.

A questão da individualidade na obra marxiana é muito discutida. Para muitos o tema só foi tratado pelo jovem Marx, tendo sido enterrado na obra posterior, dominada pela análise crítica da globalidade social na estrutura capitalista. O indivíduo foi enterrado pelo Marx adulto. Será?

Trata-se, no meu entender, de um desvio que cometeram muitos estudiosos da obra de Marx. Um deles foi Louis Althusser, que viu inclusive uma césure epistémologique – um “corte epistemológico” – cindindo a obra marxiana em dois hemisférios, o da juventude e o da maturidade. Ao certo, césure é “cesura”, utilizada na teoria da versificação em poesia como uma pausa que divide o verso, em especial o alexandrino, em dois hemistíquios. Mas a tradução para o português deu “corte” em vez de “cesura” e assim ficou. O corte não incide no maior ou menor aprofundamento no trato das questões. Incide no próprio modo de tratá-las, no método, na consideração, enfim, do que é e do que não é científico. Para marxólogos como Althusser, o verdadeiro método do materialismo histórico – o método verdadeiramente científico – só o Marx maduro alcançou. Então o “humanismo de Marx”, como foi denominado por Erich Fromm, é um erro de jovem, tal como as bebedeiras e farras boêmias dos nossos dezoito anos. Fromm, no Conceito marxista do homem, não vê aí nenhum erro, mas a essência da filosofia marxiana, cujo “problema central é o da existência do homem individual real, que é aquilo que ele faz”.

Aí está, em termos bem simples, mas não simplórios, a chave para a compreensão da questão da individualidade em Marx: o homem é aquilo que ele faz. Em outras palavras: o homem se faz pelo trabalho. É o que disse o húngaro Lukács com sua ontologia do ser social e é o que tem dito insistentemente o também húngaro Mészáros na trilha que leva para além do capital.

Cada indivíduo não nasce humano, a não ser biologicamente, senão na medida em que se produz como homem pelo trabalho e pela apropriação da cultura gerada na história pelo coletivo da espécie. Essa interiorização do patrimônio cultural da humanidade é o cerne do processo educativo. Curioso nesse processo é que quanto mais se expande a sociabilidade tanto mais emerge a individualidade.

Leandro Konder, que infelizmente nos deixou há pouco, foi um marxista que jamais sentiu pejo de falar sobre o indivíduo. E falar de jeito a ser entendido por todos: “precisamos tentar nos expressar com a maior simplicidade possível, para facilitarmos a incorporação de mais gente aos debates”. E foi assim, de maneira simples, que escreveu páginas memoráveis sobre o indivíduo e seus sentimentos, sobre a importância de resgatá-lo naquilo que tem de único, sobre os sofrimentos do indivíduo burguês, sobre o amor... Por que não? A respeito do crescimento humano pela educação, Konder cita Pico della Mirandola, que, mesmo sendo um pensador medieval, dizia que os seres humanos, exatamente por serem imperfeitos, podem se aperfeiçoar. Daí a importância, dentro da matriz teórica marxista, de se discutir o indivíduo, sua educação, sua inserção cultural, sua estrutura de sentimentos (Raymond Williams).

Fique claro, todavia, que não há nisso nenhuma concessão ao liberalismo individualista. Permanece intocada a crítica de Marx à determinação histórica da individualidade humana na sociabilidade capitalista. E, mais do que nunca, permanece viva a necessidade de superação das relações sociais que cerceiam a expansão do indivíduo humano consciente e livre. Não era essa desde o início a proposta marxiana de se passar do reino da necessidade para o reino da liberdade? Passar quem? Ora quem, doutor Carlos, eu, né? Eu, tu, ela, ele – e, consequentemente, nós, vós, eles, elas.