Diálogos (im)pertinentes, necessários à historiografia da educação em movimento

"Claro, se compartilhamos o uso do método histórico-dialético, estamos conscientes de que não se processa, segundo a nossa vontade política, uma correspondência entre o âmbito das ideias e o âmbito das relações sociais de produção, que garantem a reprodução e expansão da acumulação capitalista, pela atuação dos mecanismos do mercado e do Estado capitalista."

Inicio este novo ensaio, agradecendo o diálogo que meu caro companheiro do Histedbr, José Claudinei Lombardi, estabeleceu comigo, por meio de seu artigo publicado na Revista Eletrônica, no dia 15 de outubro de 2020, a propósito de minhas participações na lista de debates no whatsApp do grupo, quando intentei fazer uma mediação entre dois segmentos do Histedbr, que têm posições ideológicas e políticas distintas, embora não totalmente antagônicas. Esses segmentos, no entanto, encetaram um modo de enfrentamento continuado e, muitas vezes, áspero. Do meu ponto de vista, penso que se pode cultivar, como educadores marxistas, homens e mulheres em processo de transmutação, em direção ao novo ser humano sobre o qual temos teorizado, praticar o exercício de fazê-lo, de fato, emergir e crescer em meio à dialética entre o novo e o velho.

Depois de constatar que eram inócuas as minhas intenções, desisti de permanecer na lista, avaliando que perdemos energia e a oportunidade de diálogos mais pertinentes, do ponto de vista histórico, no que se refere, nesse momento, ao episódio da disputa entre chapas que irão às eleições no início de novembro, para ocupar a direção do ANDES-SN. Não me debruçarei aqui sobre esse conteúdo, pois somos todos da área da história da educação e, certamente, bem atentos aos movimentos de avanços e recuos que ocorreram na história, não muito antiga, das direções que ocuparam o espaço do sindicato nacional, com maior ou menor compromisso com sua democratização e o avanço da democracia relativa no Brasil.

Já fui da direção do ANDES-SN, ocupei a Secretaria-Geral, por uma ironia da história, pois somente aceitei participar da chapa para compô-la, ocupando a terceira secretaria, uma vez que estava em fase de elaboração da minha tese de doutorado. Mas, inesperadamente, fui empurrada pelas circunstâncias históricas que acabaram me desfavorecendo e, também, me favorecendo, paradoxalmente. Por infelicidade, subitamente, faleceu Silvio Frank Allen, secretário-geral, da chapa recém-eleita, em 1992, e os colegas que ocupavam a primeira e a segunda secretaria se evadiram, afirmando que de modo algum assumiriam esse posto. Nesse caso, caiu como uma bomba no meu colo a Secretaria-Geral do ANDES. Grande oportunidade de aprendizagem, experiência riquíssima do ponto de vista profissional e pessoal.

Foi possível vivenciar valiosas lições do cotidiano da luta com dois grandes companheiros, competentes e experientes, Edmundo Fernandes Dias e Agamenon Tavares de Almeida. Os dois foram meus orientadores, sem jamais se tornarem meus tutores, porque, apesar de serem veteranos e terem uma longa estrada de militância, estabeleceram uma relação respeitosa e fraterna comigo, uma “caloura” no movimento sindical das universidades públicas federais, pois minha experiência anterior esteve relacionada ao sindicato da UEMA e das redes públicas de educação básica, na cidade de Caxias- MA. Além dos dois, pude compartilhar com Roberto Leher e educadoras-militantes, como Ignez Navarro, a condução do GT de Política Educacional, quando finalizamos a elaboração do Projeto de Universidade do ANDES.

Dessa experiência inesquecível, tive como resultado o atraso da elaboração da tese de doutorado, por um lado, e, por outro, a compreensão mais profunda do significado da luta sindical, a partir de uma perspectiva de práticas refletidas, do ponto de vista teórico e político, e decididas pela maioria dos docentes, de se manter a autonomia do movimento sindical em relação aos partidos, às centrais sindicais, aos movimentos atrelados às lideranças políticas, sem jamais deixar de realizar as convergências, quando possível, de acordo com os objetivos e princípios políticos em pauta e, também, sem jamais deixar de produzir o debate sobre as divergências que atravessam as universidades, os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais, que se constituem no leito da história da luta de classes. Estive assim numa escola de formação política continuada, por alguns anos, o que me permitiu manter também uma postura de independência e autonomia, ancorada em fundamentos históricos e teóricos, para dar consistência à minha prática política e pedagógica, em diferentes espaços de atuação, como no Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública, na condição de representante do ANDES-SN, durante o período no qual ainda se realizava a discussão do Projeto de LDB.

Não me prolongarei, contando a minha experiência de vida no sindicato, na universidade e nos movimentos em defesa da educação pública. Não é este o meu objetivo aqui neste espaço. Recorri a esse momento da história, apenas para enfatizar para os colegas e, particularmente, para o meu caro amigo Claudinei, que não faço uma defesa apaixonada de proposições que publiquei na lista de debate, como crítica dirigida ao PT. Optei, por questões pessoais, a não me filiar a partidos e a realizar a minha prática política em sindicatos, fóruns, movimentos sociais e em grupos de pesquisa e de formação de novas gerações de educadores-militantes, dentro e fora das universidades.

Na realidade, ao propor indicações do que se deve priorizar para uma gestão de governos de esquerda, não poderia ter como reverso uma interpretação de que eu estaria fazendo uma crítica ao PT. Não, não era, pois, segundo minha avaliação, os governos em que prevaleceu a hegemonia de uma corrente do PT não equivalem a governos de esquerda, mas de coalizão de forças políticas de centro-esquerda e de direita. Aliás, a demonstração que foi feita da dinâmica de constituição das correntes que constituem o PT, por Claudinei, evidenciada em seu artigo, indica claramente que nunca houve mesmo a concepção de um programa de governo de esquerda no Brasil. Tomo como parâmetro um indicador essencial: em que medida as políticas executadas pelos governos “democrático-populares” tocaram, ainda que fosse de modo tímido, nas questões relativas à propriedade e às relações sociais de produção?

Lembro-me bem de que, no domingo posterior à eleição do Lula, em 2002, na Folha Ilustrada do Domingo, em página dupla, Perry Anderson publicou um artigo em que analisava a situação do Brasil, já em pleno processo de materialização das políticas neoliberais implantadas no Governo Fernando Henrique Cardoso e destacava que o Governo Lula haveria de enfrentar dificuldades no relacionamento com a burguesia e o mercado financeiro, mesmo não sendo de esquerda. Ora, ao fazer essa avaliação, que endossei integralmente, Perry Anderson não estava fazendo oposição a Lula e ao seu governo, mas apenas mostrando que as fortes condicionalidades históricas, que caracterizavam a conjuntura de ascensão do PT ao governo federal, precisavam ser reconhecidas, para que houvesse um esforço programático de superação dos limites concretizados pelas táticas de alianças ampliadas, em nome da “governabilidade”.

Reflitamos, objetivamente, que um país com uma história de mais de 500 anos de reprodução do pensamento escravocrata pela burguesia, e também por uma parcela significativa da classe média, não poderia, apenas em 13 anos, vislumbrar uma mudança qualitativa mais efetiva na correlação de forças políticas e na estrutura de classes do Brasil. Seria necessário realizar, continuadamente, um trabalho pedagógico de explicitação das raízes históricas da nossa formação econômica, social, política e educacional, em todos os espaços de qualificação dos militantes não somente do PT, mas, também da sociedade, em suas diversas organizações combativas, buscando adensar o pensamento crítico e a prática a ele correspondente, em graus relativos, porém progressivos. Desse modo, poderia atingir não apenas o ideário de uma sociedade socialista, em nível abstrato, mas a direção para a luta concreta pela superação do capitalismo, em todas as esferas da superestrutura, principalmente nos aparelhos de hegemonia da classe dominante, ainda sob controle da burguesia e de seus intelectuais orgânicos, entre outros, a universidade.

Claro, se compartilhamos o uso do método histórico-dialético, estamos conscientes de que não se processa, segundo a nossa vontade política, uma correspondência entre o âmbito das ideias e o âmbito das relações sociais de produção, que garantem a reprodução e expansão da acumulação capitalista, pela atuação dos mecanismos do mercado e do Estado capitalista. Como instâncias complementares, essas duas instituições atuam no processo de exploração da força de trabalho, em níveis cada vez mais intensos de jornadas que extrapolam, na atualidade, o espaço fabril, porque nelas estão sintetizadas as formas de autogestão subordinada, pelas quais os próprios trabalhadores tornam-se “empreendedores de si mesmos”.

Nos anos do governo petista, ficaram contidos, em grande medida, os conflitos estruturais. A classe dominante permaneceu privilegiada, como um dos pilares para o avanço do capitalismo financeiro, com o apoio do Estado com seu programa econômico neoliberal, enquanto a classe trabalhadora em diferentes setores, em grande medida, foi perdendo a sua capacidade de reação, mais contundente e decisiva, para a mudança de rumos da política em execução. Os movimentos sindicais, aglutinados nas várias centrais, tiveram lideranças que estabeleceram um compromisso tácito com os governos Lula e Dilma, como se já tivéssemos alcançado o máximo de realização dos objetivos políticos concebidos para o Brasil, restringindo as perspectivas mais ampliadas de um horizonte para, pelo menos, uma sociedade em transição para o póscapitalismo.

Pode-se analisar a Bolívia, em sua história recente, e avaliar a diferença que houve e que ainda está evidente no processo histórico de confronto, entre a sociedade civil organizada e a classe hegemônica, que tem perfil assemelhado ao da elite brasileira, com a diferença de que lá a escravidão original foi das populações indígenas, enquanto aqui escravizamos os indígenas e, preponderantemente, os afrodescendentes. Aqui, muito diferente de lá, não se manteve ao longo do período dos governos Lula e Dilma, uma intensa mobilização dos núcleos de ação política de resistência e de participação crítica em relação às medidas econômicas do governo.

Lá, afastando-se da concepção de uma política macroeconômica neoliberal, o Estado, a serviço de um projeto político de transição para o socialismo, sob a coordenação política do MAS, soube aproveitar as oportunidades históricas para consolidar processos de distribuição da riqueza, sem fazer concessões às grandes corporações, de modo predominante. Usou uma estratégia efetiva de nacionalizar as empresas que eram rentáveis, enquanto deixava nas mãos do mercado, o que não produzia resultados tão lucrativos. Aqui, ao contrário, o governo assumiu o controle de setores em processo de liquidação, e privatizou, com deságio, as empresas mais lucrativas do país, desde o governo Fernando Henrique Cardoso até o governo Dilma Roussef, preparando a “ ponte para o futuro”, construída no Governo Temer, que se encarregou de abrir uma ampla via para a atuação nefasta do atual Governo Bolsonaro.

Não pretendo polemizar com os caros colegas que se posicionam, de forma quase “devocional”, em relação aos mandatos dos governos Lula e Dilma, por quem tenho respeito como lideranças políticas importantes na história do país. Porém, penso que continuaremos a perder a perspectiva de superação do capitalismo, se não nos dedicarmos, de modo sistemático, disciplinado e intenso, ao processo de formação de uma nova geração de intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, que amplie o trabalho pedagógico em todos os espaços de superação de uma concepção mítica e agora, em diversas versões religiosas, que ainda prevalece no senso comum, e teve uma ampliação desconcertante, em pleno momento histórico em que se dispõe de um modo de comunicação quase instantâneo com centenas, milhares de pessoas, por meio das redes sociais. Mas, para além da realidade virtual, precisamos voltar a nos inserir na realidade concreta, depois da pandemia, buscando encontrar as pessoas, para compreender esse momento de avanço tão veloz para o passado, em que o obscurantismo se fez manifestar intensamente e tem sido responsável pela perpetração de formas de sociabilidade tão primitivas.

Lendo uma entrevista publicada no dia 24 de outubro, com Álvaro García Linera, pensei: - ah! essa poderia ser uma referência, de fato, muito importante para nós-educadores militantes no Brasil, afastando-nos das lições da história brasileira, em que não prevaleceram os sujeitos políticos coletivos.

Ao ser indagado sobre o que fará, assim que retornar à Bolívia, ele respondeu:

Linera: O de costume, sou um comunista, um conspirador. Organizar e treinar. Acho que posso passar certas experiências para as pessoas, para as novas gerações. O que vou fazer agora não tem nada a ver com a repetição do que fizemos, mas algo pode ajudar a evitar muitos erros que aprendemos em todo esse tempo. E mostrar um pouco dos nossos acertos para o futuro. Eu me vejo em uma função que exercia antes de ocupar a vice-presidência: escrever, dar palestras, fazer cursos, formar quadros políticos, organizar o mundo sindical, organizar o mundo agrário camponês, fazer televisão, fazer rádio, lutar pelo bom senso, por novos sentidos comuns. Faço isso desde os 14 anos e acho que vou morrer fazendo isso. (Publicado originalmente em 'Crisis' Tradução de Victor Farinelli). (Entrevista com Álvaro García Linera publicada no Boletim Carta Maior em 24 de outubro de 2020).

Nota: E ao anoitecer do dia 25 de outubro, a imprensa noticiou a vitória da oposição ao Governo Piñera, na luta pela reconstituição de um Estado democrático, que permitirá “enterrar” o entulho autoritário da ditadura Pinochet. Bons ventos parecem soprar nesse momento sobre o continente americano. Que venha, pois, a derrota do Trump, mesmo que se saiba que Joe Biden não tem a perspectiva de um Bernie Sanders.

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