De onde vem as vozes que clamam por democracia e por transformações profundas necessárias no Brasil?

Todas as gerações que participam da luta contra o autoritarismo, obscurantismo, negacionismo, nazismo e genocídio desejam resgatar a condição de vida digna para todas as pessoas que vivem no Brasil, porém mais do que isso desejam, fortemente, construir as possibilidades de transformação das relações sociais de produção, das relações de poder compartilhado entre setores da sociedade política e da sociedade civil, tendo como horizonte uma sociedade do bem viver, rumo ao socialismo democrático.

Ouvimos vozes potentes e vimos manifestações impressionantes serem realizadas no dia 19 de junho, lembrando-nos de muitos momentos de nossa histórica luta pela democracia no Brasil. Há uma expectativa de que se antecipará para o dia 03 de julho outra grande reação de setores majoritários da sociedade civil, diante dos últimos acontecimentos relacionados à CPI da Covid-19.   Como no passado, ainda colonial, as vozes das senzalas e dos quilombos ressoavam o clamor pela libertação dos escravos, hoje, majoritariamente, as vozes que representam as populações discriminadas encontram-se nos centros urbanos, nas periferias, no campo e nas florestas, compostas de negros, brancos e indígenas. Elas ecoam uníssonas pela retirada do governo genocida, responsável por mais de 500.000 vidas perdidas, em decorrência do contágio do coronavírus, sendo que, pelo menos, dois terços desses óbitos poderiam ter sido evitados, como afirmam os especialistas.

Existe um movimento perverso e macabro de autoridades que assumiram o compromisso com a necropolítica e insistem em promover “a imunidade de rebanho” comprovadamente ineficaz e a negar o direito à vacina, ao mesmo tempo que se comprometeram em fazer do período da pandemia um momento de exacerbação de medidas, que promovem a supervalorização do capital na área da saúde. Somam-se a essas medidas, o apoio institucional consistente aos atos de corrupção de parte dos integrantes do bloco no poder, enraizados no legislativo, na Procuradoria da República, no MPF, na PF e em segmentos do judiciário, além, obviamente, de se encontrar no executivo o poder que lidera o desmonte do Estado nacional.

Esse contexto nos assombra e, por vezes, nos leva a desacreditar que exista a possibilidade de se reverter essa correlação de forças tão desfavorável à maioria da população brasileira, em torno de dois terços provavelmente, que deseja se livrar da pandemia e do pandemônio instalado no país, desde que se proclamou o resultado questionável, juridicamente, das eleições de 2018.  Sabe-se que as eleições ocorreram sob a influência de, pelo menos dois mecanismos, já constatados nas investigações e processos em andamento no STF. Trata-se, por um lado, dos disparos de fake News durante a campanha para as eleições, por meio de um sistema acionado pelos atuais ocupantes do executivo, com financiamento nacional e internacional; de outro lado, as ações comprovadamente parciais do julgamento e prisão de Luís Inácio Lula da Silva, que o impediram de participar da campanha e eleição para presidente.

Sem dúvida, estamos lidando com uma engrenagem complexa, integrada por mecanismos, processos e procedimentos que ocupam um amplo espectro de ações de caráter institucional e não institucional, manipulada por agentes do Estado e de organizações da sociedade civil, sem nenhum pudor em subtrair o futuro do país, mediante a execução de políticas de privatização do patrimônio público, riqueza que pertence a todas as pessoas que vivem no Brasil. Também nesse mesmo processo permanecem sendo subjugadas as populações periféricas lançadas ao desemprego, à fome, à miséria e ao desalento, enquanto se regalam segmentos do governo e do exército, destacadamente, fazendo o uso indébito de recursos do orçamento oficial e “paralelo”, como se o dinheiro do Tesouro Nacional fosse propriedade privada dos governantes.

Não. Os recursos que ficam sob a guarda da administração de governantes pertencem ao povo, principalmente à parcela da população que, predominantemente, paga impostos sobre salários e sobre o consumo, além de ser obrigada, em algumas situações a fazer uso de planos de saúde, de instituições de ensino superior privadas, e até mesmo do ensino fundamental e médio nas escolas particulares, em consequência da execução de políticas públicas implementadas de modo insuficiente e precário. A parcela minoritária da população (1/3 apenas) é aquela composta pelos que vivem no topo da pirâmide, usufruindo da concentração de renda que resulta da exploração do trabalho dos agricultores, operários, trabalhadores uberizados, enfim dos que vendem a força de trabalho, cujo preço é rebaixado no mercado, aquém das necessidades de reprodução e sobrevivência dos trabalhadores.

Essa dura realidade de terra arrasada alcança o território brasileiro em gradações diferenciadas. Historicamente, as regiões Norte e Nordeste tiveram índices mais elevados de desigualdade econômico-social estrutural, dado o próprio processo de desenvolvimento do capitalismo. Por isso mesmo, pode-se identificar indicadores de desenvolvimento humano sempre mais degradados, no que se refere à infraestrutura, emprego e renda, como também aos resultados preocupantes em relação ao baixo desempenho escolar, segundo os padrões de avaliação estabelecidos pelos organismos internacionais.

Entretanto, aliadas a essas variáveis que desfavorecem essas regiões e as áreas centrais e de periferia nas grandes metrópoles, evidencia-se, paradoxalmente, uma movimentação da população que luta pela sobrevivência, a partir de uma lógica em que se sobressai a solidariedade, a organização coletiva para resistência às intempéries da natureza e da desastrosa “governança” privatizante orquestrada pelas elites associadas em âmbito nacional e internacional. Essa determinação que se encontra na prática de organização e luta do MST, do MTST e dos movimentos sociais organizados sob diferentes vetores: classe, raça e gênero, fazem emergir a possibilidade de multiplicação das vozes e dos protagonistas da história a quente, em direção a um processo de democratização radical do país.

Todas as gerações que participam da luta contra o autoritarismo, obscurantismo, negacionismo, nazismo e genocídio desejam resgatar a condição de vida digna para todas as pessoas que vivem no Brasil, porém mais do que isso desejam, fortemente, construir as possibilidades de transformação das relações sociais de produção, das relações de poder compartilhado entre setores da sociedade política e da sociedade civil, tendo como horizonte uma sociedade do bem viver, rumo ao socialismo democrático. Assim, é preciso ouvir as lideranças jovens que integram os partidos de esquerda, os movimentos sociais, como o Levante Popular, a Unidade Popular, por exemplo, as organizações que têm raízes na Teologia da Libertação e estão “ressuscitando” depois de terem sido soterradas pelo papado de João Paulo II.

Entre outras organizações, destacam-se também as que integram o amplo arco da mídia combativa, que têm liderado uma dura batalha às fake news e aos tradicionais meios de comunicação de massa, alinhados ao Estado de Exceção. Boletins que circulam em todo o país, como Esquerda On Line, Contrapoder, Brasil 247, Carta Maior, Ópera Mundi, Diário do Centro do Mundo, Nova Democracia, Portal Vermelho, The Intercept, Outras Palavras e tantos outros, acumulam um debate qualitativo sobre a conjuntura e as perspectivas de futuro para o Brasil.

Destaco aqui o exemplo do Boletim Outras Palavras que lançou recentemente, por meio do seu Editor, Antonio Martins, o Projeto Resgate, oportunizando um processo político e pedagógico de construção coletiva de bases para os debates a serem realizados, necessária e urgentemente, pelas organizações e movimentos sociais no campo da esquerda, com o propósito de traçar canais de comunicação convergentes, talvez, com os partidos de esquerda que estejam comprometidos com a discussão de programas orientadores para as campanhas e para a execução de planos governamentais com vistas à democratização radical do Brasil.

Com o desejo de contribuir com o processo de socialização das bases do Projeto Resgate publicado no Boletim Outras Palavras, reproduzo a seguir as ideias-força que estão sendo divulgadas amplamente e serão ainda mais ampliadas e disseminadas, a partir do mês de julho. Segundo minha avaliação, essa iniciativa nos permite colocar em pauta um conteúdo qualitativamente diferenciado para circular em todos os meios, em grupos de pesquisa, em organizações sociais, em rodas de conversa entre aliados e companheiros, com a finalidade de se consolidar um lastro de caráter teórico-prático, político-pedagógico, que poderá permitir um avanço real na definição de novas formas de governabilidade do país, admitindo que somente poderemos dar um salto de qualidade na nossa história, por meio de uma efetiva participação social na realização de um novo projeto de desenvolvimento do Brasil.

Examinem, analisem e divulguem em seus círculos, caros leitores, as ideias-força que seguem, extraídas do Boletim Outras Palavras do dia 25 de maio de 2021[1].

“O Resgate tenta projetar um cenário de vinte anos de transformações, num cenário de ruptura com o neoliberalismo e de questionamento das estruturas que produzem a desigualdade e a devastação do país. Para estimulá-lo, Outras Palavras formulou doze ideias-força, que serão debatidas permanentemente no site, ao longo dos próximos doze meses. Estão relacionadas a seguir. Ao clicar sobre cada uma, abre-se uma primeira versão de seu desenvolvimento:

1. Multiplicar o Investimento Público, em ruptura radical com as ideias de “austeridade” e “ajuste fiscal”

2. Resgatar o SUS, que se tornou, durante a pandemia, símbolo da importância do serviço público.

3. Construir a rede brasileira de serviços públicos de excelênciaem especial, Saúde, Educação e Mobilidade.

4. Virada socioambiental (Green New Deal brasileiro). Recuperar e transformar a infraestrutura, com transição ambiental acelerada.

5. Introduzir o direito ao Trabalho Digno Garantido e à Renda Básica da Cidadania, como políticas para executar a Virada Socioambiental.

6. Iniciar a revolução urbanística das periferias, como base para enfrentar uma desigualdade central na vida brasileira contemporânea.

7. Estabelecer uma rede de Bancos Públicos e Comunitários e Reconstruir as empresas públicas brasileiras.

8. Estimular e articular uma rede de pequenas e médias empresas, cooperativas e empreendedores individuais.

9. Recuperar a Petrobras e a soberania sobre o Pré-Sal, inclusive para geração de divisas.

10. Lançar um Programa de Reindustrialização Qualificada, articulado a partir dos serviços públicos.

11. Iniciar a Transição Agroecológica com Reforma Agrária e Proteção dos biomas brasileiros.

12. Estimular os serviços sofisticados ligados a Conhecimento, Ciência, Cultura, Comunicação e Artes.

Ambiciosas, porém, agora novamente alcançáveis, estas metas são uma alternativa ao desmonte do país. As novas tecnologias – cujo sentido ainda está em disputa – influenciarão todas as relações sociais. De que forma o Brasil emergirá, em vinte anos? Abandonar a imaginação radical é aceitar resignadamente a regressão das últimas décadas; admitir a condição de fornecedor de commodities agrícolas e minerais; condenar a maior parte da juventude a oferecer mão-de-obra precária, barata e ultra alienada às plataformas globais de trabalho. A uma minoria ínfima e muito poderosa – os proprietários e capatazes da “fazenda Brasil”, esta perspectiva é confortável. Aos 99,9%, resta lutar por uma reconstrução nacional — em outras bases. Mas isso não se fará sem construir um novo horizonte coletivo”.

 

 

                    Maria de Fatima Felix Rosar[i]

 

[i] Com este ensaio, encerro a minha participação no Boletim Eletrônico do HISTEDBR. Na oportunidade, agradeço aos organizadores o espaço que me foi concedido, também deixo o meu agradecimento aos leitores que dedicaram parte de seu tempo, lendo os ensaios aqui publicados.

 

[1]Para leitura integral do documento - Resgate: derrotar o fascismo e refazer o Brasil -  leia  Outras Palavras por Antônio Martins, Publicado 21/05/2021 às 19:02 - Atualizado 23/05/2021 às 13:38.

 

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