A história se repetirá como tragédia?

Passados 37 anos do fim da ditadura civil-militar, convivemos com uma ameaça de aprofundamento do golpe que se deu 2016, repetindo a tragédia de 1964. De forma análoga, lideranças populares são intimidadas, perseguidas ou encarceradas. Marielles continuam sendo silenciadas pela força das armas em  diferentes regiões do Brasil. A destruição dos direitos dos trabalhadores é real, assim como a miséria multiplicando-se nas diferentes cidades brasileiras

 

O 18 Brumário de Luís Bonaparte foi redigido por Marx entre dezembro de 1851 e março de 1852. No texto o autor analisa as lutas revolucionárias da França entre 1848 e 1851, que culminou no golpe de Estado de Napoleão III que, tal qual seu tio, Napoleão Bonaparte, tornou-se imperador da França.

Trata-se de uma das obras mais significativas para o entendimento das teses basilares do materialismo histórico e dialético: a questão do Estado e da luta de classes, o papel desempenhado pelos partidos na vida político e social, além de formular uma caracterização rigorosa do caráter do bonapartismo.  

Ainda que Napoleão III não fosse o representante dileto da burguesia, esta comungou com o golpe na medida que as lutas travadas na França, fundamentalmente após 1848, colocaram em risco a manutenção da ordem burguesa. Como isso foi possível? Marx demonstra “como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói.” (MARX, 1997, p. 14).

Em uma breve síntese é possível verificar como Marx examina as características políticas do Estado moderno: a organização do aparelho civil e militar como elementos de manutenção da ordem.  Concomitantemente, analisa ainda como a república parlamentar se forjou como espaço de dominação burguesa e, que nas circunstâncias do período, a burguesia teve que  abrir mão para impedir a ascensão das lutas populares.

De tal modo, o que Marx nos ensina é que a questão central não é o Estado, mas as relações de produção capitalistas. Nela, tudo tem forma social de mercadoria, tudo é produzido para ser vendido e explorado: alimentos, habitação, segurança, educação e até a força de trabalho do trabalhador.  Não basta tomar o governo e manter a estrutura social intacta, não basta que um operário governe se as relações de produção permanecem inalteradas. (MASCARO, 2015).

Ora, de forma análoga, diante das lutas e dos conflitos que antecederam 1964, a burguesia associada ao capital aos interesses imperialistas arquitetou o golpe. Assim como em outros momentos da história, não foi propriamente um burguês que tomou o Estado. Como forma de legitimação do golpe não faltaram vastos recursos para difusão das velhas mentiras sobre a ameaça comunista, a luta contra a corrupção e o atendimento do clamor popular pela intervenção salvacionista. As Forças Armadas assumiram o controle em um momento de instabilidade para a burguesia, mas a direção econômica coube aos donos do capital.  

De tal modo, o período pós 1964 foi marcado pelo crescimento da repressão, com prisões arbitrárias, torturas e assassinatos de todos aqueles que representaram o questionamento real ou imaginado da ordem estabelecida. Também não deve causar estranheza os áudios revelados e as transcrições de sessões do Superior Tribunal Militar, ocorridas entre 1975 e 1979, publicadas por Miriam Leitão, em O Globo[1] e em outros órgãos de imprensa[2].

Apesar de não se constituir em uma novidade, pois a tortura já havia sido denunciada pelas vítimas, por testemunhos de torturadores, além dos documentos que vieram a público, não deixa de ser esclarecedor o conhecimento por parte dos juízes do Supremo Tribunal Militar, que existia no país um sistema que humilhava, torturava e assassinava presos políticos. Porém, nada que tenha retirado a tranquilidade da burguesia. Afinal, grandes empresas contribuíram para o aparato repressivo.

 

A reestruturação da PE paulista e a Operação Bandeirante foram socorridas por uma “caixinha” a que compareceu o empresariado paulista. A banca achegou-se no segundo semestre de 1969, reunida com Delfim num almoço no palacete do clube São Paulo, velha casa de dona Veridiana Prado. O encontro foi organizado por Gastão Vidigal, dono do Mercantil de São Paulo e uma espécie de paradigma do gênero.  (GASPARI, 2002, p. 62).

 

Ora, os dados revelados e os estudos já realizados constituem-se em provas materiais da existência de uma política de extermínio das lideranças mais combativas. Tratou-se de uma política promovida pelo Estado, mas com o apoio financeiro de diferentes segmentos da burguesia.

Como é de conhecimento geral, nenhum torturador ou general presidente foi punido pelos crimes que cometeu. Também não foram punidos aqueles que financiaram a repressão, que deram respaldo aos esquadrões da morte. A ferida aberta pela ditadura não cicatrizou e muitos dos que foram assassinados sequer tiveram o corpo entregue às suas respectivas famílias. 

Passados 37 anos do fim da ditadura civil-militar, convivemos com uma ameaça de aprofundamento do golpe que se deu 2016, repetindo a tragédia de 1964. De forma análoga, lideranças populares são intimidadas, perseguidas ou encarceradas. Marielles continuam sendo silenciadas pela força das armas em  diferentes regiões do Brasil. A destruição dos direitos dos trabalhadores é real, assim como a miséria multiplicando-se nas diferentes cidades brasileiras[3].

A retórica golpista do atual ocupante do Palácio do Planalto não é uma ameaça vaga. Com a conivência da Procuradoria Geral da República e do Congresso Nacional, inúmeros crimes foram cometidos. Além disso, o questionamento constante do sistema eleitoral é mais um indício da arquitetura do golpe. Diante da ameaça real, por que deveríamos acreditar nas intenções democráticas da burguesia? Afinal, o parlamento não é o balcão de negócios que segue preferencialmente a ”agenda do mercado”[4]?. O silenciamento cumplice de diferentes dos homens de negócios e de seus intelectuais diante de inúmeros crimes cometidos é a expressão de um apoio envergonhado, mas não menos lucrativo aos interesses do capital[5].

Os áudios revelados do Superior Tribunal Militar revelam não apenas um fato do passado. A tortura ainda se faz presente em inúmeras delegacias e os pareceres dos diferentes juízes que fizeram piadas com o infortúnio de homens e mulheres nas masmorras da ditadura voltam a ser repetidas pelo atual mandatário e seu vice.

Vivemos sob a "Espada de Dâmocles", uma ameaça constante sobre nossas cabeças. O aprofundamento do golpe é uma das cartas sobre a mesa. Retirá-la do jogo é uma tarefa necessária para os trabalhadores. Ainda que o Estado continue burguês, pois as relações de produção não se alteram por meio do jogo eleitoral, é necessário criarmos espaços de luta para organização dos trabalhadores. A vitória do fascismo não permitirá essa tarefa.

 

Referências:

 

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1997.

MASCARO, Alysson Leandro. A crítica do Estado e do direito: a forma política e a forma jurídica. In: NETTO, José Paulo. (org.) Curso livre Marx-Engels: a criação destruidora. São Paulo: Boitempo, 2015.

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